Por
Renato Luiz de Oliveira Ferreira[1]
O poeta é aquele que usa
a sensibilidade, a criatividade e a expressão artística para plantar, semear e
colher os ingredientes da vida e transformá-los em alimento para a humanidade,
na dosagem, no momento e no sabor que cada alma necessita. O poema é a imagem
da alma do poeta num momento de distração e encanto provocado pela inspiração.
A poesia é a união de todos estes elementos em plena harmonia. Já o escritor é
um inventor de mundos, personagens, narrativas, um amante da prosa, que leva o
leitor, através da semiologia e linguística saussuriana e da semiologia
peirceana, a uma experiência
adimensional a partir de cada memória exposta em suas narrativas, através do
signo (povo e lugar) gerando emoção.
João Rodrigues Pinto,
professor, escritor, poeta, graduado em Letras, mestre em Teatro, doutor em
linguística, pai de Henrique e Laisa, eterno namorado de Leila, menino
prodígio, de sorriso fácil, nascido em Licínio de Almeida – BA, vem através de
sua recente obra, “Gado Bravo” ― recordações de um tempo vivo ―, dividida em
crônicas, levar o leitor a reviver momentos, ou
seja, sentir o cheiro e ouvir o som do passado, degustar reminiscências
de uma geração que enche de orgulho o âmago dos licinienses.
Gado Bravo é uma obra
significante, pois JRP mergulha, através das narrativas, num mundo onde ele é narrador-personagem, pois
vivenciou ao lado de sua mãe, seu pai, irmãos, tios, avós, amigos, professores,
pessoas conhecidas e desconhecidas, a construção de um lugar, a formação de um
povo, pois a vida, apesar de ser uma experiência individual-temporal, com
origem e objetivo desconhecidos, para a sua existência há a necessidade do
outro. Por isso Lacan (1985) diz que, para o encontro com o grande Outro é
preciso também a aproximação do ser (sujeito) com o pequeno outro para formar
um pequeno todo; além da junção do ser mais o outro, mais o Outro, para formar
o grande Todo, pois para a existência
humana é necessário o contato com o próximo e com o mundo, formando assim o fenômeno
da alteridade.
As narrativas de Gado
Bravo mostra que, além da alteridade há o encantamento, onde o tempo é
imperceptível, pois conforme o pensador húngaro Mihaly Csikszentmihalyi (2020),
quando pessoas estão envolvidas em algo e não percebem o tempo fluir, é porque
atingiram um estado de felicidade. O pequeno lugar descrito em Gado Bravo
relembra passagens da crônica “A cidadezinha”, de Rachel de Queiroz:
[...] Era uma
vez uma cidadezinha,
dessas muito antigas.
Pequena, mal tinha
umas cinco ruas
meio tortas e desencontradas. As casas, nessas ruas, eram
quase todas baixinhas. No meio delas uns
dois sobrados, o
casarão da escola
e o outro
casarão muito feio,
com janelas gradeadas,
onde ficava a cadeia.
[...] Mas a graça
daquela cidadezinha era a igreja, que a gente até poderia chamar de igrejinha.
(QUEIROZ, 1992.p.3).
A igrejinha é o marco
inicial de muitas cidades, mas a lagoa Gado Bravo é o centro do universo
liciniense, onde ao amanhecer a luz solar é absorvida pela natureza e, ao som
do canto do pássaros, do apito do trem lá de longe... do encantador voo dos
beija-flores e da graça do sorriso dos
anjos, o Criador colore o novo dia, surpreendendo as crianças, extasiando os
românticos e inspirando o poeta, que transforma em arte esse instante. No fim
da tarde, exaustos, todos se recolhem, mas o poeta agora observa o luar
refletindo a luz do astro-rei na lagoa, que, imediatamente, a retransmite para
a cidadezinha modesta, tão cheia de graça e esplendor, de gente que só quer
viver cada minuto dessa viagem chamada vida. E assim, o tempo para e o momento
volta a virar arte poética.
A história da lagoa que
concebeu uma cidade, e guarda em suas águas os segredos de um povo, lembra o
livro de Gênesis (2:8-15), onde o Senhor planta um jardim no Éden, e depois faz
brotar da terra toda árvore agradável e boa para o alimento, a árvore do
conhecimento do bem e do mal e, de onde sai um rio para regar um jardim, e
depois se divide em quatro novos rios, ou seja, Pisom, Giom, Tigre e Eufrates.
Neste viés, JRP, através
das crônicas de um tempo vivo, leva o leitor a um espetáculo tal qual uma peça
teatral, em três movimentos, onde há as vertentes com características do drama,
do melodrama, da ópera, do monólogo, musical, entre outros, pois o cotidiano a
partir de sua infância, e do amor philia pela sua gente faz manter viva as
memórias de sua cidadezinha, dos causos, e de experiências transformadoras,
onde expõe suas emoções, aprendizados, que o transforma em autor de uma
história que leva ao autoconhecimento e reflexão para entender o presente e a
importância de outrem em sua formação humanística, pois de acordo com Lyra
(2005, p31, apud Motta, 2011, p.2), “este lugar – espacial e temporal – só é
ocupado por uma única pessoa no transcorrer da autobiografia da sua vida. Esta
autobiografia é escrita por cada indivíduo como autor. O sujeito é autor de sua
própria história, simplesmente porque não há outra possibilidade para que ele
exista.”.
É através da literatura
que JRP estabelece o encontro consigo mesmo, o que de certa forma influencia as
novas gerações para realizarem, com consciência, a transcendência para dar
continuidade à escrita da história de Licínio de Almeida.
O primeiro movimento da
obra de JRP tem o título de “Narrativas da boca do vento” e tem início com a
crônica “O trem mal assombrado”, e faz lembrar as histórias de visagens da
infância, mas que traz do fundo da alma a melodia da obra de Heitor
Villa-Lobos, “O trenzinho caipira” e os versos de Ferreira Gullar: “Lá vai o
trem com o menino/ Lá vai a vida a rodar/ Lá vai ciranda e destino/ Cidade e
noite a girar/ Lá vai o trem sem destino/ Pro dia novo encontrar/ Correndo vai
pela terra/ Vai pela serra/ Vai pelo ar...” E a viagem de JRP segue em “A Lapa
do Bom Jesus”, onde a emoção bate forte ao lembrar da infância com seus irmãos:
Lena, Osmar, Nenê e Tida, seus pais, entre outros parentes e amigos. E segue a
romaria, pois o importante da caminhada é a companhia.
As crianças e seus voos
rasantes degustam a vida em “Os meninos da boca do vento”. E chega o mês de
junho o com frio, as férias escolares e as fogueiras em: “São João passou por
aí?”. Assim as lágrimas transbordam do leitor mais sensível e que traz à
memória os versos da canção “Noites brasileiras”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas:
“Ai que saudades que eu sinto/ Das noites de São João/ Das noites tão
brasileiras nas fogueiras/ Sob o luar do sertão...”. Em “A janela de dona Emília”
surge o drama da infância dolorosa em uma estranha menina. Em “O sumiço do
forasteiro” há o suspense que lembra, do ponto de vista técnico e narrativo,
cenas de obras de Alfred Hitchcock.
Na incrível viagem de JRP
há “A esperança de cada dia” e as questões existenciais e o maior grau de amor
na humanidade, o materno. Em “Crônica do paraíso” há o corte metafórico do
cordão umbilical, um drama lacrimoso. A presença feminina retorna de forma
dramática em “A menina da beira da lagoa” e sua grandeza até no nome, Magna. A
crônica “O médico da família” é uma homenagem ao doutor Áureo, um ser humano
brilhante, carismático. Ele deixou um legado importante para os licinienses. Em
“A menina e o vaga-lume” há novamente a presença da alma feminina e o brilho de
uma estrela iluminando a lagoa Gado Bravo. “O diário de Laisa” é uma declaração
de amor de um pai a uma garota feliz e sonhadora.
A música não poderia
faltar na viagem ao passado de JRP. Em “Banda voou” a emoção faz lembrar os
versos da canção de Milton Nascimento e Tunai: “Certas canções que ouço/ Cabem
tão dentro de mim/ Que perguntar carece/ Como não fui eu que fiz/ Certa emoção
me alcança/ Corta minha alma sem dor/ Certas canções me chegam/ Como se fosse o
amor..”. É esse amor por sua gente que transborda também em “O cinema de minha
infância” e a descoberta do mundo através da tela, enchendo de emoção os
corações dos meninos da Boca do Vento e que foi fonte de inspiração para a
criação de do grupo teatral Sol Amarelo. Assim “O Sol Amarelo e o fazer
teatral” fecha o primeiro movimento com a encenação de momentos que entraram
para a atemporalidade.
O segundo movimento da
obra de JRP tem o título de “As algemas de Lucas” que tem início com a crônica
“O olhar de Lucas” e a dialética de um sonho literário. Em “Antes que o galo
cante” mostra a angústia, desilusão e dor. Em “A cidade de lona” há o início do
lado humanístico com foco nas questões do homem do campo e a luta da terra para
quem nela trabalha. Em “A pedagogia da terra” há a luta pela reforma agrária
através do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e os ideais de Paulo
Freire, Karl Marx, entre outros pensadores, que lutaram pela libertação dos
oprimidos. Também lembra os ideais da Teologia da Libertação. Em “As vozes da
feira” há um diálogo que remete ao cotidiano popular e a luta pela
sobrevivência.
A angústia de Jesus e a
sua morte que é revivida diariamente através das ações humanas ressurge em “O mergulho na consciência”. Faz
Lembrar o aforismo 125 do livro “A gaia ciência” de Nietzsche: “O Homem Louco –
[…] Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro
da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus
continua morto! E nós o matamos!”.
A presença feminina
reaparece em “A lógica do conhecimento” e o poder dos violentos. Em “Recolhendo
os pedaços” há o renascimento para a continuação do sonho. Em “Sangue e sorvete
de morango” ressurge a essência da música Domingo no Parque, de Gilberto Gil.
Em “Manoel Viana” há a experiência de um efêmero sopro suave e profundo que
tenta penetrar no coração de pedra do mundo. Em “O voo do bico-de-fogo” há uma
alusão ao sertanejo da obra “Os sertões”, de Euclides da Cunha. Em “O
passarinho da asa quebrada” há o exemplo da citação de Luciano de Crescenzo:
“Somos todos anjos de uma asa só; só podemos voar abraçados uns aos outros.”.
Em “A gênese da pedagogia da alternância” há o exemplo da angústia entre as
dualidades vida e morte; alegria e dor; chegada e partida. Em “ Terra dos
cristais” surge a história do amor da personagem pela terra, pela sua gente e a
valorização de suas memórias. “O homem, o tempo e o pôr-do-sol” mostra a
história do homem, o seu tempo e sua presença como parte do mundo.
O terceiro e último
movimento da obra de JRP tem o título de “Entre a prosa e o verso” e tem início
com a poesia “O Homem” onde o eu lírico fala do sonho, realização e felicidade.
Em “Flordenice” o eu lírico ressurge com o amor philia. No poema “Joana” é
resgata a memória da figura feminina e sua labuta. Em “Navegação” surge no eu lírico
o amor eros. No poema “No sertão baiano” o eu lírico traz a riqueza do nordeste
e o dialeto sertanejo. Em “O saco da onça” há a lenda da suçuarana e os causos
de um povo. No poema “Cálido” ressurge as memórias da cidadezinha, os rios,
aves e anjos.
A beleza da alma feminina
surge em “Canção para Luiza”. Em “Míngua” ressurge o grito da criança e a
utopia infantil, sempre presente na obra de JRP. A figura feminina, também
muito presente na obra de JRP, ressurge com muita beleza nos poemas “Ana Batista”
e “Margarida”. A alma do poeta ressurge no eu lírico de “Extremo”. E a emoção novamente transborda
através de Guilherme Rodrigues Pinto nos verso de “Terra de Estranhos”. A
saudade, o amor, o pranto, a canção, a amizade e o desejo permanecem vivos em
“Reveses da memória”, “Guina”, “Nostalgia” “Intensidade”, “Poetizando”,
“Cartas”, “Desver”, “Tormenta”, “Canção do Brio”, “Legião”, “O nosso tempo”,
“Os meninos”, “Ferrovia”, “Velho garoto”, “Fernandando” e “Holocausto”.
E chega ao fim a
emocionante viagem lembrando os versos de Milton Nascimento e Fernando Brant em
Encontros e despedidas: “São só dois lados da mesma viagem/ O trem que chega é
o mesmo trem da partida/ A hora do encontro é também despedida/ A plataforma
dessa estação é a vida desse meu lugar/ É a vida desse meu lugar, é a
vida...”.
Dessa forma o menino João
segue a sua caminhada levando consigo as experiências adquiridas no contato com
a sua gente. As narrativas de Gado Bravo são tão saborosas que até o leitor que
não teve o privilégio de vivenciá-las sente saudade desse tempo, pois ao
terminar a leitura sente que também faz parte dessa experiência ímpar, conforme
diz o eu lírico do poema de Renato Luiz de Oliveira Ferreira:
PRETÉRITO PERFEITO
Senti saudade de
um tempo “que não vivi”
Fez falta porque
foi bom
Foi bom porque
valeu a pena
Valeu a pena
porque sorri
Sorri porque fui
feliz
Fui feliz porque
amei
Lá bem longe...
onde plantei minha arte
Foi assim... A
vida é um vai e vem retado. (FERREIRA,
2014).
Por fim, sabe quem
inventou essa coisa chamada amor? O mesmo que idealizou essa tal de saudade.
Sabe o que uma coisa tem a ver com a outra? Ou seja, já sentiu a falta de
alguém que até chorou? Ah... deve sentir essa dor quase todos os dias. Para o
Criador o seu sentimento é inspirador. Sabe como pode chamar isso? Daquilo que
o poeta mais rima com dor... Por isso Gado bravo é um gesto de amor.
[1] Escritor, músico, poeta e professor, com
formação em Engenharia, Filosofia, Matemática e Psicanálise. E-mail:
<renato.flamenco@gmail.com>.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA ONLINE. Genesis 2. Disponível em: < https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/2>. Acesso em 29 de dezembro de 2022
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FERREIRA, Renato Luiz de Oliveira. Pretérito Perfeito. Disponível em: < http://renatoluizdeoliveiraferreira.blogspot.com/2014/12/preterito-perfeito.html>. Acesso em 30 de dezembro de 2022.
LACAN, J. O eu e o outro. In: O SEMINÁRIO — Livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979.
LACAN, J. Introdução do grande outro. O SEMINÁRIO — Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
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NASCIMENTO, Milton. Álbum. Encontros e Despedidas. Polygram, 1985.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. 2º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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QUEIROZ, Rachel de. Andira. São Paulo: Siciliano, 1992.
TUNAI; NASCIMENTO, M. Certas canções. In: NASCIMENTO, M. Anima. Ariola, 1982. 1 disco sonoro. Lado B, faixa 3.