sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

MEMÓRIAS EM PLENO MOVIMENTO: A RELEITURA DE UM TEMPO, UM POVO E UM LUGAR EM GADO BRAVO

  

Por Renato Luiz de Oliveira Ferreira[1]

 

O poeta é aquele que usa a sensibilidade, a criatividade e a expressão artística para plantar, semear e colher os ingredientes da vida e transformá-los em alimento para a humanidade, na dosagem, no momento e no sabor que cada alma necessita. O poema é a imagem da alma do poeta num momento de distração e encanto provocado pela inspiração. A poesia é a união de todos estes elementos em plena harmonia. Já o escritor é um inventor de mundos, personagens, narrativas, um amante da prosa, que leva o leitor, através da semiologia e linguística saussuriana e da semiologia peirceana,  a uma experiência adimensional a partir de cada memória exposta em suas narrativas, através do signo (povo e lugar) gerando emoção.

João Rodrigues Pinto, professor, escritor, poeta, graduado em Letras, mestre em Teatro, doutor em linguística, pai de Henrique e Laisa, eterno namorado de Leila, menino prodígio, de sorriso fácil, nascido em Licínio de Almeida – BA, vem através de sua recente obra, “Gado Bravo” ― recordações de um tempo vivo ―,  dividida em crônicas, levar o leitor a reviver momentos, ou  seja, sentir o cheiro e ouvir o som do passado, degustar reminiscências de uma geração que enche de orgulho o âmago dos licinienses.

Gado Bravo é uma obra significante, pois JRP mergulha, através das narrativas, num  mundo onde ele é narrador-personagem, pois vivenciou ao lado de sua mãe, seu pai, irmãos, tios, avós, amigos, professores, pessoas conhecidas e desconhecidas, a construção de um lugar, a formação de um povo, pois a vida, apesar de ser uma experiência individual-temporal, com origem e objetivo desconhecidos, para a sua existência há a necessidade do outro. Por isso Lacan (1985) diz que, para o encontro com o grande Outro é preciso também a aproximação do ser (sujeito) com o pequeno outro para formar um pequeno todo; além da junção do ser mais o outro, mais o Outro, para formar o grande Todo, pois para  a existência humana é necessário o contato com o próximo e com o mundo, formando assim o fenômeno da alteridade.

As narrativas de Gado Bravo mostra que, além da alteridade há o encantamento, onde o tempo é imperceptível, pois conforme o pensador húngaro Mihaly Csikszentmihalyi (2020), quando pessoas estão envolvidas em algo e não percebem o tempo fluir, é porque atingiram um estado de felicidade. O pequeno lugar descrito em Gado Bravo relembra passagens da crônica “A cidadezinha”, de Rachel de Queiroz:

 

[...] Era  uma  vez  uma  cidadezinha,  dessas  muito  antigas.  Pequena,  mal  tinha  umas  cinco  ruas  meio  tortas  e desencontradas. As casas, nessas ruas, eram quase todas baixinhas. No meio delas uns  dois  sobrados,  o  casarão  da  escola  e  o  outro  casarão  muito  feio,  com  janelas  gradeadas,  onde  ficava a cadeia.

[...] Mas a graça daquela cidadezinha era a igreja, que a gente até poderia chamar de igrejinha. (QUEIROZ, 1992.p.3).

 

A igrejinha é o marco inicial de muitas cidades, mas a lagoa Gado Bravo é o centro do universo liciniense, onde ao amanhecer a luz solar é absorvida pela natureza e, ao som do canto do pássaros, do apito do trem lá de longe... do encantador voo dos beija-flores  e da graça do sorriso dos anjos, o Criador colore o novo dia, surpreendendo as crianças, extasiando os românticos e inspirando o poeta, que transforma em arte esse instante. No fim da tarde, exaustos, todos se recolhem, mas o poeta agora observa o luar refletindo a luz do astro-rei na lagoa, que, imediatamente, a retransmite para a cidadezinha modesta, tão cheia de graça e esplendor, de gente que só quer viver cada minuto dessa viagem chamada vida. E assim, o tempo para e o momento volta a virar arte poética.

A história da lagoa que concebeu uma cidade, e guarda em suas águas os segredos de um povo, lembra o livro de Gênesis (2:8-15), onde o Senhor planta um jardim no Éden, e depois faz brotar da terra toda árvore agradável e boa para o alimento, a árvore do conhecimento do bem e do mal e, de onde sai um rio para regar um jardim, e depois se divide em quatro novos rios, ou seja, Pisom, Giom, Tigre e Eufrates.

Neste viés, JRP, através das crônicas de um tempo vivo, leva o leitor a um espetáculo tal qual uma peça teatral, em três movimentos, onde há as vertentes com características do drama, do melodrama, da ópera, do monólogo, musical, entre outros, pois o cotidiano a partir de sua infância, e do amor philia pela sua gente faz manter viva as memórias de sua cidadezinha, dos causos, e de experiências transformadoras, onde expõe suas emoções, aprendizados, que o transforma em autor de uma história que leva ao autoconhecimento e reflexão para entender o presente e a importância de outrem em sua formação humanística, pois de acordo com Lyra (2005, p31, apud Motta, 2011, p.2), “este lugar – espacial e temporal – só é ocupado por uma única pessoa no transcorrer da autobiografia da sua vida. Esta autobiografia é escrita por cada indivíduo como autor. O sujeito é autor de sua própria história, simplesmente porque não há outra possibilidade para que ele exista.”.

É através da literatura que JRP estabelece o encontro consigo mesmo, o que de certa forma influencia as novas gerações para realizarem, com consciência, a transcendência para dar continuidade à escrita da história de Licínio de Almeida.

O primeiro movimento da obra de JRP tem o título de “Narrativas da boca do vento” e tem início com a crônica “O trem mal assombrado”, e faz lembrar as histórias de visagens da infância, mas que traz do fundo da alma a melodia da obra de Heitor Villa-Lobos, “O trenzinho caipira” e os versos de Ferreira Gullar: “Lá vai o trem com o menino/ Lá vai a vida a rodar/ Lá vai ciranda e destino/ Cidade e noite a girar/ Lá vai o trem sem destino/ Pro dia novo encontrar/ Correndo vai pela terra/ Vai pela serra/ Vai pelo ar...” E a viagem de JRP segue em “A Lapa do Bom Jesus”, onde a emoção bate forte ao lembrar da infância com seus irmãos: Lena, Osmar, Nenê e Tida, seus pais, entre outros parentes e amigos. E segue a romaria, pois o importante da caminhada é a companhia.

As crianças e seus voos rasantes degustam a vida em “Os meninos da boca do vento”. E chega o mês de junho o com frio, as férias escolares e as fogueiras em: “São João passou por aí?”. Assim as lágrimas transbordam do leitor mais sensível e que traz à memória os versos da canção “Noites brasileiras”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas: “Ai que saudades que eu sinto/ Das noites de São João/ Das noites tão brasileiras nas fogueiras/ Sob o luar do sertão...”. Em “A janela de dona Emília” surge o drama da infância dolorosa em uma estranha menina. Em “O sumiço do forasteiro” há o suspense que lembra, do ponto de vista técnico e narrativo, cenas de obras de Alfred Hitchcock.

Na incrível viagem de JRP há “A esperança de cada dia” e as questões existenciais e o maior grau de amor na humanidade, o materno. Em “Crônica do paraíso” há o corte metafórico do cordão umbilical, um drama lacrimoso. A presença feminina retorna de forma dramática em “A menina da beira da lagoa” e sua grandeza até no nome, Magna. A crônica “O médico da família” é uma homenagem ao doutor Áureo, um ser humano brilhante, carismático. Ele deixou um legado importante para os licinienses. Em “A menina e o vaga-lume” há novamente a presença da alma feminina e o brilho de uma estrela iluminando a lagoa Gado Bravo. “O diário de Laisa” é uma declaração de amor de um pai a uma garota feliz e sonhadora.

A música não poderia faltar na viagem ao passado de JRP. Em “Banda voou” a emoção faz lembrar os versos da canção de Milton Nascimento e Tunai: “Certas canções que ouço/ Cabem tão dentro de mim/ Que perguntar carece/ Como não fui eu que fiz/ Certa emoção me alcança/ Corta minha alma sem dor/ Certas canções me chegam/ Como se fosse o amor..”. É esse amor por sua gente que transborda também em “O cinema de minha infância” e a descoberta do mundo através da tela, enchendo de emoção os corações dos meninos da Boca do Vento e que foi fonte de inspiração para a criação de do grupo teatral Sol Amarelo. Assim “O Sol Amarelo e o fazer teatral” fecha o primeiro movimento com a encenação de momentos que entraram para a atemporalidade.

O segundo movimento da obra de JRP tem o título de “As algemas de Lucas” que tem início com a crônica “O olhar de Lucas” e a dialética de um sonho literário. Em “Antes que o galo cante” mostra a angústia, desilusão e dor. Em “A cidade de lona” há o início do lado humanístico com foco nas questões do homem do campo e a luta da terra para quem nela trabalha. Em “A pedagogia da terra” há a luta pela reforma agrária através do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e os ideais de Paulo Freire, Karl Marx, entre outros pensadores, que lutaram pela libertação dos oprimidos. Também lembra os ideais da Teologia da Libertação. Em “As vozes da feira” há um diálogo que remete ao cotidiano popular e a luta pela sobrevivência.

A angústia de Jesus e a sua morte que é revivida diariamente através das ações humanas  ressurge em “O mergulho na consciência”. Faz Lembrar o aforismo 125 do livro “A gaia ciência” de Nietzsche: “O Homem Louco – […] Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”.

A presença feminina reaparece em “A lógica do conhecimento” e o poder dos violentos. Em “Recolhendo os pedaços” há o renascimento para a continuação do sonho. Em “Sangue e sorvete de morango” ressurge a essência da música Domingo no Parque, de Gilberto Gil. Em “Manoel Viana” há a experiência de um efêmero sopro suave e profundo que tenta penetrar no coração de pedra do mundo. Em “O voo do bico-de-fogo” há uma alusão ao sertanejo da obra “Os sertões”, de Euclides da Cunha. Em “O passarinho da asa quebrada” há o exemplo da citação de Luciano de Crescenzo: “Somos todos anjos de uma asa só; só podemos voar abraçados uns aos outros.”. Em “A gênese da pedagogia da alternância” há o exemplo da angústia entre as dualidades vida e morte; alegria e dor; chegada e partida. Em “ Terra dos cristais” surge a história do amor da personagem pela terra, pela sua gente e a valorização de suas memórias. “O homem, o tempo e o pôr-do-sol” mostra a história do homem, o seu tempo e sua presença como parte do mundo.

O terceiro e último movimento da obra de JRP tem o título de “Entre a prosa e o verso” e tem início com a poesia “O Homem” onde o eu lírico fala do sonho, realização e felicidade. Em “Flordenice” o eu lírico ressurge com o amor philia. No poema “Joana” é resgata a memória da figura feminina e sua labuta. Em “Navegação” surge no eu lírico o amor eros. No poema “No sertão baiano” o eu lírico traz a riqueza do nordeste e o dialeto sertanejo. Em “O saco da onça” há a lenda da suçuarana e os causos de um povo. No poema “Cálido” ressurge as memórias da cidadezinha, os rios, aves e anjos.

A beleza da alma feminina surge em “Canção para Luiza”. Em “Míngua” ressurge o grito da criança e a utopia infantil, sempre presente na obra de JRP. A figura feminina, também muito presente na obra de JRP, ressurge com muita beleza nos poemas “Ana Batista” e “Margarida”. A alma do poeta ressurge no eu lírico de  “Extremo”. E a emoção novamente transborda através de Guilherme Rodrigues Pinto nos verso de “Terra de Estranhos”. A saudade, o amor, o pranto, a canção, a amizade e o desejo permanecem vivos em “Reveses da memória”, “Guina”, “Nostalgia” “Intensidade”, “Poetizando”, “Cartas”, “Desver”, “Tormenta”, “Canção do Brio”, “Legião”, “O nosso tempo”, “Os meninos”, “Ferrovia”, “Velho garoto”, “Fernandando” e “Holocausto”.

E chega ao fim a emocionante viagem lembrando os versos de Milton Nascimento e Fernando Brant em Encontros e despedidas: “São só dois lados da mesma viagem/ O trem que chega é o mesmo trem da partida/ A hora do encontro é também despedida/ A plataforma dessa estação é a vida desse meu lugar/ É a vida desse meu lugar, é a vida...”. 

Dessa forma o menino João segue a sua caminhada levando consigo as experiências adquiridas no contato com a sua gente. As narrativas de Gado Bravo são tão saborosas que até o leitor que não teve o privilégio de vivenciá-las sente saudade desse tempo, pois ao terminar a leitura sente que também faz parte dessa experiência ímpar, conforme diz o eu lírico do poema de Renato Luiz de Oliveira Ferreira:

 

      PRETÉRITO PERFEITO

 

Senti saudade de um tempo “que não vivi”

Fez falta porque foi bom

Foi bom porque valeu a pena

Valeu a pena porque sorri

Sorri porque fui feliz

Fui feliz porque amei

Lá bem longe... onde plantei minha arte

Foi assim... A vida é um vai e vem retado.  (FERREIRA, 2014).

 

Por fim, sabe quem inventou essa coisa chamada amor? O mesmo que idealizou essa tal de saudade. Sabe o que uma coisa tem a ver com a outra? Ou seja, já sentiu a falta de alguém que até chorou? Ah... deve sentir essa dor quase todos os dias. Para o Criador o seu sentimento é inspirador. Sabe como pode chamar isso? Daquilo que o poeta mais rima com dor... Por isso Gado bravo é um gesto de amor.



[1]  Escritor, músico, poeta e professor, com formação em Engenharia, Filosofia, Matemática e Psicanálise. E-mail: <renato.flamenco@gmail.com>.

 

REFERÊNCIAS


BÍBLIA ONLINE. Genesis 2. Disponível em: < https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/2>. Acesso em 29 de dezembro de 2022

CORTELLA. Mario Sergio. Qual é a tua obra? Inquietações propositivas sobre a Gestão, Liderança e Ética. São Paulo: Vozes; 2007.

FERREIRA, Renato Luiz de Oliveira. Pretérito Perfeito. Disponível em: < http://renatoluizdeoliveiraferreira.blogspot.com/2014/12/preterito-perfeito.html>. Acesso em 30 de dezembro de 2022.

LACAN, J. O eu e o outro. In: O SEMINÁRIO — Livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979.       

LACAN, J. Introdução do grande outro. O SEMINÁRIO — Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.

CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Fluxo: A psicologia do alto desempenho. São Paulo: Objetiva, 2020.

GONZAGA, Luiz. DANTAS, Zé. Álbum: Noites Brasileiras, 1954.

GULLAR, Ferreira. Melhores poemas. Sel. Alfredo Bosi. 6. ed. São Paulo: Global, 2000.

MOTTA, Flavia Encarnação. Dialogicidade e narrativa em redações de crianças. Universidade Federal do Espírito Santo, 2011. Disponível em: < https://sappg.ufes.br/tese_drupal//tese_3981_.pdf>. Acesso em: 29 de dezembro de 2022.

NASCIMENTO, Milton. Álbum. Encontros e Despedidas. Polygram, 1985.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. 2º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

PINTO, João Rodrigues. Gado Bravo ― recordações de um tempo vivo. Vitória da Conquista, BA. Editora do Autor, 2021.

QUEIROZ, Rachel de. Andira. São Paulo: Siciliano, 1992.

TUNAI; NASCIMENTO, M. Certas canções. In: NASCIMENTO, M. Anima. Ariola, 1982. 1 disco sonoro. Lado B, faixa 3.




quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

A SAGACIDADE DA NARRATIVA DE HISTÓRIAS ROUBADAS E UM DIÁLOGO COM A CONTEMPORANEIDADE

  

Por Renato Luiz de Oliveira Ferreira[1]

 

 Há uma tendência natural na literatura, isto é, o diálogo com o passado, pois as memórias são ricas fontes de informações e inspiração. Desde a infância há um fascínio da humanidade com a história. De forma ilimitada há a tentativa de se chegar ao inconsciente individual e coletivo e, se possível, criar hipóteses para as questões metafísicas, porém é algo notável quando o escritor é capaz de dialogar com o seu tempo, utilizando o passado como experiência e o futuro como possibilidade, vivendo corajosamente o presente com a sua força transformadora, pois conforme Ferreira (2021): “Não há como resistir às mudanças naturais das coisas; se for o momento certo não há barreira que suporte, pois a força da transformação (do novo), é imbatível.”.

É neste viés que Décio Torres Cruz, menino de sorriso largo, Ph.D em Literatura Comparada pela State University of New York, EUA, professor e pesquisador da UFBA, imortal da Academia de Letras da Bahia, irmão do também imortal Antônio Torres, membro da Academia Brasileira de Letras, nascidos no arraial do Junco, hoje cidade de Sátiro Dias-BA, de uma família de excelentes escritores ― essa história de talentos familiares rememora os ilustres irmãos santamarenses, Caetano Veloso e Maria Bethânia, e seus familiares brilhantes. Sendo assim, Décio Torres vem através de sua recente obra, “Histórias roubadas”, lançada pela Editora Penalux (2022), dividida numa coletânea de contos, levar o leitor a despertar sobre o seu tempo.

O título da obra de DT faz uma alusão às palavras de Antoine-Laurent de Lavoisier: “Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.”. Desta forma, o autor pega os fatos do cotidiano para compor novas histórias, da mesma forma que o compositor ao fazer um samba, uma canção de amor ou uma dedicatória. É a mimese platônica e aristotélica da representação do universo perceptível, onde para Platão a criação é vista como um rapto, ou seja, uma imitação, e, para Aristóteles, a arte é a representação do mundo. Nada muito diferente da essência da obre de DT.

A sagacidade da narrativa de “Histórias roubadas” provoca uma surpresa ao leitor, principalmente àqueles acostumados à leitura de contos que remete ao passado. DT traz algo diferente, tal qual João Gilberto, ao provocar um estado de encantamento com a precisão rítmica e as harmonias bem trabalhadas no seu violão, trazendo novas possibilidades e sonoridade à MPB, e uma forma de cantar que faz lembrar Henri Salvador. Os acordes “roubados” do jazz, com um ritmo sutilmente captado do samba, numa execução em um andamento mais lento, se transforma num estilo que passa a ser chamado de “Bossa nova”.

Ao ler “Histórias roubadas” o leitor mais experiente pode ter a sensação de ter encontrado um João Gilberto da literatura, ou seja, a forma de escrever contos de DT é jazzística, tendendo à Bossa nova, mas não colocando o termo como algo complexo, mas diferente, novo, agradável, surpreendente, atemporal, isto é, uma antítese, pois tem extrema classe sem deixar a simplicidade de lado.

DT demonstra com sabedoria que a literatura está em pleno movimento porque parece ser uma energia potencial, mas é a própria energia cinética. Por isso os contos são provocantes, tal qual René Magritte ao transcender com sagacidade na tela “A Clarividência”, isto é, cria um autorretrato pintando um pássaro a partir de um ovo tomado como modelo.

A narrativa de DT começa com “O ladrão de histórias” e o surpreendente final onde o leitor passa a ser cúmplice do desfecho. Em seguida há “Aula de Português”  e a capacidade da língua em criar histórias sobre erros gramaticais, ou seja, é um chiste, a partir da suspeita do diálogo das personagens, professora e aluna, sobre  um erro gramatical daquela que é, segundo o eu lírico do primeiro verso do poema “Língua Portuguesa” de Olavo Bilac: “Última flor do Lácio, inculta e bela”. Já em “Fronteiras do encantamento” a emoção transborda dos olhos do leitor sensível, pois lembra os versos da música “Boas Festas”, do baiano Assis Valente: “[...] Eu pensei que todo mundo/ Fosse filho de Papai Noel/ E assim felicidade/ Eu pensei que fosse uma/ Brincadeira de papel.” Em “A aluna deslocada e tresloucada” há um cômico diálogo: “Sei davvero così o stai solo fingindo o scherzando?” (você é assim mesmo ou só está fingindo ou brincando?).

Em “O Lamaçal” há a luta pela sobrevivência contra a “revolução dos bichos”. Em “O mistério dos jogos mentais” há um drama em que remete à obra freudiana, Interpretação dos sonhos, onde o autor afirma que o sonho é a realização de um desejo. Em “As tribulações de Anaí” há a Lei da Causa e Efeito, causalidade, relacionada com a Lei do Karma. “Margô e seus sonhos postergados” lembra os versos de Caetano Veloso na música Língua:“[...] a poesia está para a prosa, assim como o amor está para a amizade/ E quem há de negar que esta lhe é superior?”. Em “Sobre ondas e bancos de areia” há uma reflexão sobre os presságios da vida. Em “As tias” há a mostra de que felicidade é um estado de espírito.

A metafísica da vida do personagem passeia na bela e enigmática narrativa de “Estradas possíveis e as trilhas não percorridas”. Em “Maria Hortência com H” surge o eco dos conflitos da cidade grande onde o leitor sente as presenças de Hilda Hilst e Clarice Lispector. Em “A avó do Wesley”, conforme o autor sugere, deve ser lido lembrando Caio Fernando Abreu e Roberto Drummond, ou seja, a angústia do cotidiano. Em “A lua sobre as veredas tropicais” há a desilusão e o renascimento através da esperança. Em “Zuleica, minha irmã” há um exemplo de constrangimento e a arte de “pagar mico” nas aulinhas de inglês. Em “O caso do psicólogo” há o incrível caso das variáveis X e KM, onde Freud, se pudesse, sorriria da paixão, da libido narcísica  e do recalque.

A energia psíquica, o impulso e o desejo, que daria uma boa conversa entre Freud, Jung, Lacan e Nelson Rodrigues, ressurgem em “A divina tragédia humana”. Em “Um dia na periferia da vida” há mais uma vez a forte presença feminina, que mostra os desafios do cotidiano da mulher na metrópole e a dinâmica do seu tempo no transporte público. A libido freudiana volta a aquecer o amor eros e seu romantismo adolescente em “A moreninha suburbana em Paquetá”. Já “A revolta do personagem” traz o pensamento de Oscar Wilde em “A decadência da mentira e outros ensaios”, e a frase: “A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. Em “Lucia e Alfredo” surge o eu lírico de Vinícius de Moraes com a frase. “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.”.

Conforme Julio Cortázar: “O romance vence sempre por pontos, enquanto o conto deve vencer por nocaute”. Isso ocorre em “Era uma vez uma cidadezinha”, onde DT fecha com chave de ouro.

Por fim,  é uma obra libertadora e dialoga com o seu tempo com ousadia ao expor os temas polêmicos do cotidiano, causadores de desconforto numa sociedade submissa aos preconceitos desde o inconsciente coletivo. Sendo assim, “Histórias roubadas” e seu logos, preso ao senhor da razão para os poetas e, para Agostinho, o instante entre o passado (lembranças) e o futuro (expectativas), onde Einstein definiu como uma teimosa ilusão e, para  Heidegger: “[...] eu mesmo, e cada qual seria o tempo; e nós, no nosso estar uns com os outros, seríamos o tempo...”, e onde para Agamben (2009), é a relação singular com o tempo, é a contemporaneidade, com movimento constante no devir para a transformação do mundo. Eis, pois, a práxis de um grande escritor e poeta através de uma obra literária transformadora.

 

REFERÊNCIAS


AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo In. ____O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.

BILAC, Olavo. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1976.

CORTÁZAR, Julio. Algunos aspectos del cuento. Obra crítica/2. Madrid: Alfaguara, 1994, pp. 365-385.

CRUZ, Décio Torres. Histórias roubadas. Guaratinguetá, SP: Penalux, 2022.

FERREIRA, Renato Luiz de Oliveira. O trato e a aposta: um casuísmo burlesco-agrestino. Londrina: Viseu. 2021.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: parte II. 2ºed. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis. Vozes, 1998.

LAVOISIER, A. L.. Tratado Elementar de Química. São Paulo: Madras, 2007. 397 p. Tradução: Laís dos Santos Pinto Trindade.

PAQUETÁ, Marcel. René Magritte: o pensamento tornado visível. Lisboa: Taschen, 2000.p.59-74.

REIS, Dulce Tadeu. Agora a batucada já vai começando: samba, carnaval e raça em Assis Valente. Disponível em: < https://www2.ufjf.br/ppghistoria//files/2017/03/Agora-a-batucada-j%c3%a1-vai-come%c3%a7ando.pdf>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022.

RIBEIRO, Luiza. Uma breve história da polêmica bossa nova. Disponível em: < https://www.queridoclassico.com/2022/07/uma-breve-historia-da-polemica-bossa.html>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022.

ROMANELLI , Francisco Antonio. a língua brasileira no discurso do samba: de Noel Rosa a Caetano Veloso. Disponível em: < http://www.entremeios.inf.br/published/429.pdf>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022.

SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da. A dança da vida: Buytendijk e a fenomenologia do encontro. Disponível em: < https://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistaestudosfilosoficos/art6%20rev13.pdf.>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022.

TAVARES, Braulio. Crônicas e outros textos. O conto e o romance. Disponível em: < https://editoras.com/o-conto-e-o romance/#:~:text=Marcelino%20lembrou%20uma%20famosa%20defini%C3%A7%C3%A3,corrida%20de%20100%20metros%20rasos.)>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022.

WILDE, Oscar. A decadência da mentira e outros ensaios. Trad. João do Rio. Rio de Janeiro: Imago, 1994.



[1] Escritor, músico, poeta e professor, com formação em Engenharia, Filosofia, Matemática e Psicanálise. E-mail: <renato.flamenco@gmail.com>.

 


quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

A EXISTÊNCIA E A ESSÊNCIA A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS EM UM PEQUENO MUNDO: A CONTEMPLAÇÃO DE UM POVO E UMA CIDADE EM LEVES SOMBRAS

Por Renato Luiz de Oliveira Ferreira[1]

 

Ser escritor é criar mundos, personagens, narrativas, onde a receita é a criatividade com palavras na dosagem, sabor e temperatura, na medida ideal, seja em poesia, prosa... gerando um clímax de forma a levar o leitor a uma viagem transformadora, seja ao passado (em fatos históricos), no presente (na escrita do seu tempo), ou ao futuro (num mundo de possibilidades), pois escrever é voar na imaginação com alma leve, é poder, sofrer, rir, chorar, decidir e, o mais importante, realizar a práxis, uma ação transformadora no mundo. Por isso, o escritor é imortalizado através de sua arte.

Luiz Eudes, do arraial do Junco, hoje cidade de Sátiro Dias-BA, primo de dois imortais da literatura brasileira: Décio Torres, membro da Academia de Letras da Bahia e Antônio Torres, membro da Academia Brasileira de Letras ― além de ter outros familiares craques na escrita literária ―, vem através de sua obra, Leves Sombras, dividida numa coletânea de contos, levar o leitor a uma viagem através do tempo, numa cidade viva no âmago do autor e onde o leitor passa a viver e sentir a emoção de quem carrega consigo o amor do seu pequeno-grande lugar. Por isso, conforme Sartre: “A existência precede a essência...”.

A narrativa de Leves Sombras mostra um cotidiano onde o relógio não é percebido, pois personagens e leitor não notam o movimento temporal e, conforme o conceito de Mihaly Csikszentmihalyi, psicólogo húngaro, quando indivíduos estão envolvidos em algo onde não notam o tempo passar é porque atingiram um estado de felicidade. É viver a “querida cidade”, título do romance do imortal Antônio Torres. Esse estado de espírito pode ser sentido nos versos de Moraes Moreira e Fausto Nilo: “Felicidade é uma cidade pequenina/ é uma casinha é uma colina/ qualquer lugar que se ilumina/ quando a gente quer amar...”.

No livro de Gênesis (4:17-26) é através do perverso Caim, após sua ingratidão contra Deus e a deslealdade contra o seu irmão, quem dá origem à cidade: “Caim construiu uma cidade e a chamou de Enoque, o nome do seu filho.”, mas há relatos das primeiras cidades surgidas há aproximadamente 4000 AEC, na mesopotâmia, região entre os rios Tigres e Eufrates. Alguns arqueólogos arriscam a dizer: “a primeira cidade foi Eridu, na Suméria, mas a primeira civilização foi em Uruk, situada a leste do rio Eufrates.”. Também surgiu, aproximadamente, em 1800 AEC, na Mesoamérica, na civilização pré-colombiana, as cidades maias. A partir daí, por volta de 600 AEC, surge a cidade de Atenas, na Grécia, marcada pela invasão dos povos aqueus, eólios e jônios e foi o principal centro urbano da pólis (cidade-Estado). Em Atenas surgiu  grande parte do pensamento e  histórias que fascinam a humanidade até os dias atuais.

Desse modo, Luiz Eudes leva o leitor a uma experiência com enredo encantador, onde pessoas simples são protagonistas, com subtextos bem trabalhados, mantendo a tensão num tom ideal durante a narrativa, onde o signo linguístico dos falares de um povo estabelece uma relação ― conforme a teoria de Saussure  ― entre um significante, representação da imagem acústica de uma palavra, e um significado, isto é, o conceito  da palavra, sua representatividade. Sendo assim, o significante e o significado criam asas, unindo-se a outros signos linguísticos, levando o leitor a ser o intérprete de um mundo, isto é, desta cidade do coração, e, o ser, a partir de suas reminiscências, passa a compreender o dasein, expressão de Heidegger para expressar o ser-no-mundo, ou seja, “ser” e não “estar”, no sentido de existir a partir das experiências de um pequeno mundo.

As prosas do cotidiano, além de gerar imagens através da linguística saussuriana, conseguem, transcender na relação fenomenológica do sujeito e objeto (leitor  e cidade); é uma “fotografia”, onde segundo a semiologia de Peirce, pode ser analisada de acordo a representação, e está apta a produzir nos seus receptores, isto é, interpretante final (o leitor), um efeito, e novas leituras, a partir de cada fragmento (conto), do signo (cidade) tomada como modelo nos três elementos formais de qualquer experiência semiótica, ou seja, energético (a curiosidade), emocional (o sentimento) e lógico (interpretação da imagem na mente do leitor) em que cada narrativa provoca. Por isso, Cortázar (1994, p.371) fala da relação do conto com a fotografia: “[...] recortar um fragmento da realidade, impondo-lhe certos limites, mas de tal forma onde esse recorte atue como uma explosão para expor uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica, transcendendo espiritualmente, o campo coberto pela câmera.”

Neste viés, a obra Leves Sombras mostra o cotidiano de um lugar, ou seja, das noites de festa e da paixão da infância; do amor philia entre companheiros; do historiador ao manter viva a memória de sua terra; do suspense nas madrugadas; dos causos de política; do sagrado e do profano; da fé mimética dos passos de São José a caminho do Egito; do herói; do valor de uma gota d’água; da astúcia de Roberval; da graça da madrinha de Zé Pequeno, do viajante inveterado, do bacharel, da vingança da enxada e do golpe da máquina fotográfica; dos tempos de sonhos; do futebol no rádio de pilha; das tardes de chuva e do cheiro de terra molhada; da tarde indo embora lentamente; do silêncio da noite; de um pouco de loucura; dos boêmios; da música; da aurora; do primeiro encontro com o mar; e a vontade de não haver o fim das histórias, mas sejam as palavras de Belchior em sua obra: “O amor, humor das praças/ cheias de pessoas/ agora eu quero tudo/ tudo outra vez...”

Por fim, essa breve viagem leva o leitor à repetição sadia do inconsciente individual a partir do inconsciente coletivo, ou seja, rememorando um tempo bom, pois segundo Nasio (2012, p. 34) “[...] a repetição é uma tendência, uma força que avança e nos arrasta para nos tornamos mais de nós mesmos. A repetição tem a finalidade de produzir três efeitos: preservar a unidade de indivíduo, desenvolver ao máximo potencialidades e consolidar o sentimento de que somos o mesmo ontem e hoje.”. Sim, é isto que propõe Luiz Eudes em sua obra, ou seja, rememorar um lugar, uma gente, um tempo, de forma a manter viva enquanto há vida,  memórias que cada ser carrega em si.

 

REFERÊNCIAS

 

BELCHIOR, Antônio Carlos. TUDO OUTRA VEZ. Álbum: Era uma vez um homem e o seu tempo, WEA, 1979.

BÍBLIA ONLINE. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/4/17-26>. Acesso em 28 de agosto de 2022

CORTÁZAR, Julio. Algunos aspectos del cuento. Obra crítica/2. Madrid: Alfaguara, 1994, pp. 365-385.

CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. A descoberta do fluxo – a psicologia do envolvimento na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

EUDES, Luiz. Leves Sombras. São Paulo: Essencial, 2022.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: parte II. 2ºed. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis. Vozes, 1998.

MOREIRA, Moraes. NILO, Fausto. PÃO E POESIA.  Álbum: Pão e Poesia. Ano: 1995.

NASIO, Juan-David. Por que repetimos os mesmos erros. Tradução: André Telles. 2º ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

PEIRCE, C. S. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

SANTAELLA, L. O que é semiótica. 20. reimp. São Paulo: brasiliense, 2004a.

SANTAELLA, L. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. 2. ed. São Paulo: Pioneira , 2004b.

SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004c.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978 [1946]. (Os Pensadores).

SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes, Isidoro Blikstein Cultrix, São Paulo: 1975.

URUK: A PRIMEIRA CIDADE.  Disponível em: < https://super.abril.com.br/historia/uruk-a-primeira-cidade/>. Acesso em 28 de agosto de 2022.

  


[1] Escritor, músico, poeta e professor, com formação em Engenharia, Filosofia, Matemática e Psicanálise. E-mail: <renato.flamenco@gmail.com>.

 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Um mero “engano”

São nove horas da manhã. Aristides está no escritório da CTC (Companhia do Trabalho Constante), com muitos afazeres: ligar para  fornecedores, enviar e receber mensagens via computador, verificar os pedidos dos clientes, o desempenho de sua equipe, dar informações aos superiores e ainda ter bom humor para superar o estresse. Apesar de árduo, o trabalho é a sua vida.

Em meio a tantas tarefas percebe a vibração do seu celular conectado ao computador, via cabo USB, para recarregar. A ligação é  desconhecida.

― Alô! ― atende de forma a não perder muito tempo.

― Oi, meu amor, meu gostoso, tesão da minha vida...

― Quem fala?

― Não está reconhecendo a minha voz? Precisa relaxar...

― Preciso saber quem é.

Ocorre um silêncio...

― Não é Alencar?!

Aristides começa a rir do outro lado da linha. Esquece por alguns instantes dos afazeres, finge ser outra pessoa e emposta a voz.

― Sou eu, meu amor, Alencar...

― Levei o maior susto!

― Apavorei?...

― Pensei ter ligado para o número errado. Gelei de medo.

― Está com saudade?

― Estou louca de saudade, uma semana parece uma eternidade. Vamos sair hoje, aproveite o horário do seu almoço. Estou louca pra beijar, fazer amor...

― Não tem medo?

― Medo de quê? O meu marido está trabalhando. Na verdade o cara só pensa nos clientes, na empresa... Esqueceu da mulher e dos filhos. Há tempo não me olha, nem me procura. Parei de reclamar. Estou carente, mas ainda bem tem quem me queira.

― Qual local nós vamos?

― No lugarzinho de sempre. Esqueceu? Gosto de lá porque não há risco de sermos reconhecidos. Sou prevenida. Quando falamos ao telefone modifico o tom da voz, falo de forma sensual, bem diferente de quando converso com o meu marido. Vai que um dia ligue pra ele pensando ser pra você. O nome dos dois começa com a letra a.

― Como é mesmo o nome do seu marido? Esqueci...

― O nome dele é Aristides. Trabalha na CTC. Aquele só merece o que o boi tem. A vida não é só trabalho. Todo homem casado tem de fazer manutenção, senão a mulher terceiriza.

Agora pare de fazer pergunta chata. Vou lhe esperar ao meio dia. Ouviu, Alencar?... Meu gostoso, amor da minha vida. Hoje vou fazer um escândalo naquela cama redonda e, pode me chamar daquele jeito, eu gosto. Tchau, preciso ir, estou ligando de um orelhão.

― Cleusa!

― Alencar, está me ouvindo? O que aconteceu?

― Ligou errado... Foi um mero engano.

― Não é Alencar?! Meu Deus...

A ligação cai... Aristides fica em silêncio por alguns instantes, de cabeça baixa. Pega o celular com as mãos trêmulas e, em vez de ligar para sua mulher, envia-lhe uma mensagem:

Amor, vou pedir férias hoje ao meu chefe para fazermos aquela tão sonhada viagem com as crianças. Já havia até esquecido, faz tempo não tiro férias.

Outra coisa, vamos jantar fora hoje? Depois poderemos ir a um cinema ou a um teatro... e em seguida, daremos uma boa relaxada numa banheira.

Um beijo do seu amado Aristides.

Renato Luiz de Oliveira Ferreira


quinta-feira, 19 de maio de 2022

O pequeno mensageiro

O povo dizia que brincava sozinho

Ficava fincado numa grumixameira

Sabia prosear com cada passarinho

Um dia sumiu, atiçou muita faladeira

 

Fartamente procurado na redondeza

Pior, não acharam rastro, nem cheiro

Era amigo dos bichos e tinha sageza

Com tempo foi visto no despenhadeiro

 

Rezadeiras suplicavam a não perecer

E os homens subiram ligeiro a cavalo

Tinham de chegar antes do escurecer

Logo viram pequeno correr num estalo

 

“Vem cá, moleque!” ― gritou o raivoso

Assustado correu pra beira do abismo

Falou outro: “Vai tomar surra, teimoso!”

O menino pulou e voou livre ao lirismo

 

Ficaram de olhos arregalados de medo

Das nuvens surgiu um sinal da deidade

E a lua cheia revelou o grande segredo:

Só há sentido viver se houver alteridade

 

E o anjo fez a emoção jorrar das janelas


Renato Luiz de Oliveira Ferreira