Uma das coisas mais extraordinárias da natureza é a metamorfose. Uma
mudança que também ocorre no Homem, ― não da mesma forma dos insetos,
batráquios (anfíbios) ―, mas, no sentido figurado, uma renovação na sua essência.
O escritor Rubem Alves explica sobre a renovação da vida e a razão do
mestre supremo dos haicais (pequena
composição poética japonesa em três versos),
o poeta japonês, Matsuó Munefusa Bashô (1644-1694), a respeito da sua
paixão pelas bananeiras:
“A sua admiração era tamanha que o apelido Bashô tem o significado de ‘bananeira’.
[...] Trata-se de uma árvore estranha: dá somente um cacho de bananas. Seu
caule extremamente macio deve ser cortado ― o que pode ser feito com um único
golpe de facão. Cortado o caule, de dentro do cepo velho nasce um broto que
cresce e vira outra bananeira. [...] Entendi, então, a razão do gosto de Bashô
pelas bananeiras: elas simbolizam a nova vida que brota sempre da vida velha,
acabada”. (ALVES, 2011, p. 43 e 44).
É justamente este renascimento que ocorre com quem começa a praticar o
perdão. Mas isso, conforme toda mudança requer um tempo, pois há a necessidade
de ser semeada, cultivada e, por fim, brotada de forma natural, com uma grande
dose de amor, mas não da forma vulgar como é utilizado na contemporaneidade. A
palavra amor precisa ser entendida etimologicamente e espiritualmente no seu verdadeiro
sentido.
A respeito do amor, segundo o filósofo Ghiraldelli Junior, se divide em
três formas:
“Para os gregos, o amor se expressava em duas palavras: ‘eros e philia’. A tradução moderna diz que ‘eros’
relaciona-se ao amor com conotações sexuais, e que ‘philia’ é o amor da amizade. [...] Todavia, essa forma de traduzir
diz mais de nós, modernos, que dos gregos. ‘Philia
e eros’ não tinham essa distinção tão rígida. Ambas significavam o amor. Quando
se queria fazer alguma distinção, era necessário dissertar sobre tais palavras
e as atividades envolvidas”. [...] a palavra ‘ágape’: escrita em grego pelos
primeiros padres da Igreja, quando do advento do movimento cristão, refere-se ao
amor de Jesus, algo bem diferente, pois era o amor de Deus para com os homens ―
fraternal: em que todos somos irmãos. Portanto, ‘ágape’ é o que se aproxima do
amor familiar, mas posto para todos em relação a todos”. (GHIRALDELLI, 2011, p.
9 e 10).
Geralmente se concede o perdão à pessoa e não ao ato, pois há momentos
em que uma criatura comete um erro de forma involuntária ― porque é humana ― ou
de forma consciente, acreditando, na sua estupidez, que está agindo
corretamente, e às vezes para o bem do próximo; porém há casos em que a maldade
surge porque está na essência de quem a pratica. Pode ocorrer também, de uma
pessoa ser magoada porque praticou uma ação indevida e que provocou uma reação
de ira em outra. Há situações de alguém magoar por estar nervoso ou radiante ao
extremo e não pensar nas consequências, principalmente porque há dois
sentimentos efêmeros que provocam a cegueira humana: um é a paixão, o outro é o
ódio, bem diferente do desamor. A paixão é como uma bebida alcoólica que “aquece”
o sangue e dá um movimento impetuoso a alma e uma atração forte pelo outro ou
por algo; uma parcialidade, muitas vezes confundida por amor, levando pessoas a
cometerem loucura por uma felicidade temporária. Já o ódio é outra bebida que
provoca um efeito contrário, causando um movimento entrópico (caótico) no
organismo, onde se perde a noção de equilíbrio, levando ao adoecimento do
corpo, da mente e da alma.
Uma das mais belas e divinas transformações que a vida pode oferecer a
um indivíduo é a metamorfose da alma: é quando a paixão se transforma em amor,
e o ódio em perdão, um gesto de amor. Tudo isso sem pedir nada em troca. Não há
como deixar de lembrar de Riobaldo na obra Grande
Sertão: Veredas: “Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa,
sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de
saúde, um descanso na loucura”. (ROSA, 1994, v.2, p. 438 e 439).
Quando alguém
percebe que está preparado para perdoar ele o faz seguindo os três amores. Pode
ser através do amor eros, quando um dos parceiros ou ambos, dão o perdão após
uma grande mágoa ou conflito. Muitas vezes para salvar o relacionamento, a
família, o outro, a si mesma, uma pessoa cede e perdoa. Após o ato, a paz começa
a reinar e a felicidade renasce aos poucos... é a presença desse amor. Também
ocorre o contrário, de em nome do amor e da falta de reciprocidade, deixar que
o outro navegue em direção a outros mares e, que, se o amor for recíproco, que
volte para ser recebido de braços abertos pelo seu porto seguro, mas caso não
seja, que siga o seu caminho, aporte em outro coração e seja feliz. Dessa forma,
estarão livres para serem como a “bananeira”, que cortada o caule, cresce e vira outra
bananeira, com cada um renascendo para um novo amor e transformando o antigo em
amizade (philia) ou apenas lembrança.
Percebe-se então, que o amor eros não é imortal.
O perdão também pode vir do amor philia:
altruísta, carinhoso, amigo, generoso, doador, podendo até ser platônico, entre
outros. Pode acontecer quando uma pessoa qualquer: pai, mãe, filho, irmão,
amigo, causa ao outro uma grande frustração, dor, mágoa, e assim por diante.
Este perdão poderá vir de duas formas: a da aproximação, quando depois de uma
grande reflexão a alma libera a energia negativa armazenada (potencial) dissipando-a
de forma dinâmica (cinética), liberando o ressentimento, a dor, o choro contido
por muito tempo, aliviando os ombros, os pulmões, o ritmo cardíaco, a
adrenalina, a mente, e finalmente o espírito. Muitas vezes termina num aperto
de mão, num abraço, num beijo, num sorriso.
Pode-se também perdoar através do distanciamento, sem que a outra pessoa
jamais fique sabendo, pois além de estar um pouco afastada pode ter falecido. Isso
provoca, no mínimo, a uma das partes, a libertação das amarras e do peso da dor
― provocadora de doenças físicas e psíquicas que se estende aos membros de sua família
―, além de eliminar as perturbações que fazem a pessoa perder o sono com
pesadelos, a paz, a alegria, os momentos felizes... devido à sombra de alguém o
destruindo. O mais incrível é que, enquanto não ocorre o ato, ambos permanecem
ligados por uma corrente do mal. É a interrupção e a criação de uma dicotomia ―
com cada um seguindo o seu verdadeiro caminho ― que surgirá a sensação de bem
estar.
Um dos mais belos exemplos de amor é o maternal (philia), pois mesmo com a quebra do cordão do bem (umbilical), um
cordão sentimental continua para a eternidade. Neste caso jamais haverá um
substituto. Por isso, segundo Ferreira (2014):
“Há um equívoco quando dizem que ninguém é insubstituível, porque
simplesmente trocar uma pessoa por outra é muito fácil; porém o grande desafio
para a humanidade é descobrir um substituto à altura do substituído. Isso sem esquecer
de que há casos impossíveis devido à questão sentimental (o amor)”. (FERREIRA,
2014).
Finalmente, o perdão pode vir na forma do amor ágape, que está acima do
físico, pois é espiritual, atemporal, eterno, sincero, igualitário, como é o
amor de Deus e o do seu filho, Jesus Cristo, que deu o maior exemplo de perdão
para a humanidade. Isso só é entendido quando a pessoa passa a caminhar ao lado
do Pai e começa a entender que:
“As coisas simples são as mais belas e sinceras da humanidade, saem do
fundo da alma, pois é a nossa cara pelo avesso. Mostra-nos quem somos, enxergamos,
sentimos e sonhamos o que seja o mundo. Assim podemos entender como e o porquê
que Deus o criou, para em seguida descobrirmos as vias para irmos ao seu
verdadeiro encontro. São caminhos simples: a inspiração, que é o sinal da
comunicação; a concentração, que é o momento do encontro; a fé, que é o
alimento; a oração, que é o diálogo; a obediência, que é o direito à caminhada
ao lado do Pai”. (FERREIRA, 1992).
Esse amor ágape é capaz de fazer acontecer o perdão sem nada em troca,
libertando espiritualmente o Homem. É como uma doação, no caso de ajuda a um
enfermo, a um desempregado, a um faminto, a uma pessoa que sofreu violência, a
um deficiente físico ou mental, entre outras.
Pensando na teoria espírita, quando o perdão não surge o ódio é levado
para outras vidas. Não há a libertação. A pessoa já sabendo das dificuldades,
deve começar pedindo perdão a si, depois ao próximo e finalmente cedê-lo com
amor e de coração aberto. Um grande exemplo é a primeira epístola de São Paulo
aos Coríntios (1 Co 13: 1-13), citada pelo poeta português, Luís Vaz de Camões, na obra ‘Os Lusíadas’, soneto XI, intertextualizada e musicada pelo compositor Renato Russo
com o título de Monte Castelo: “Ainda
que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem amor, eu
nada seria... [...] É só o amor que conhece o que é verdade”. (RUSSO, 1989).
Portanto, para realizar o perdão através das três formas de amor, tem de
haver o desapego para se ganhar a alforria. Cada indivíduo deve se alimentar de
bons fluidos e ganhar diariamente a força necessária para a prática do bem e para
o seu renascimento através da felicidade interior a ser irradiada para o mundo.
Esta é a melhor forma de guardar alguém, pois guardar não é acorrentar uma
pessoa aos pés, mas deixá-la viver. Tudo isso com uma dose de carinho e
presença permanente: no pensamento, fisicamente, espiritualmente. Dessa forma, cada
pessoa entenderá que: “O amor só é válido quando há permissão das partes para
vivê-lo como um todo ― intensamente ―, sem pensar no amanhã, mas apenas
senti-lo a cada instante, na forma mais pura possível”. (FERREIRA, 2010).
Por isso, o perdão é a energia renovável que transforma a alma através
do amor, dando asas a liberdade.
Renato Luiz de Oliveira Ferreira
REFERÊNCIAS
ALVES,
Rubem. Variações Sobre o Prazer: Santo
Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette. 6a ed. São Paulo: Planeta
do Brasil, 2011.
FERREIRA,
Renato Luiz de Oliveira. A difícil arte
de substituir. 2014. Disponível em: <http://renatoluizdeoliveiraferreira.blogspot.com.brl>. Acesso em: 26 de agosto de 2014.
. Caminhos
de Encontro. 1992. Disponível em: <http://renatoluizdeoliveiraferreira.blogspot.com.brl>. Acesso em: 26 de agosto de 2014.
. O
Amor. 2010. Disponível em: <http://renatoluizdeoliveiraferreira.blogspot.com.brl>. Acesso em: 26 de agosto de 2014.
GHIRALDELLI
Junior, Paulo. Como a Filosofia pode
explicar o Amor. 1a ed. São Paulo: Universo dos Livros, 2011.
112 p.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 1a ed. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v. 2.
RUSSO,
Renato. As Quatro Estações. Rio de
Janeiro: EMI, 1989. Disponível em: <http://letras.mus.br/legiao-urbana/22490/>. Acesso em: 26 de agosto de 2014.