Por Renato Luiz de Oliveira Ferreira[1]
Ser
escritor é criar mundos, personagens, narrativas, onde a receita é a
criatividade com palavras na dosagem, sabor e temperatura, na medida ideal,
seja em poesia, prosa... gerando um clímax de forma a levar o leitor a uma
viagem transformadora, seja ao passado (em fatos históricos), no presente (na
escrita do seu tempo), ou ao futuro (num mundo de possibilidades), pois
escrever é voar na imaginação com alma leve, é poder, sofrer, rir, chorar,
decidir e, o mais importante, realizar a práxis, uma ação transformadora no
mundo. Por isso, o escritor é imortalizado através de sua arte.
Luiz
Eudes, do arraial do Junco, hoje cidade de Sátiro Dias-BA, primo de dois
imortais da literatura brasileira: Décio Torres, membro da Academia de Letras
da Bahia e Antônio Torres, membro da Academia Brasileira de Letras ― além de
ter outros familiares craques na escrita literária ―, vem através de sua obra,
Leves Sombras, dividida numa coletânea de contos, levar o leitor a uma viagem
através do tempo, numa cidade viva no âmago do autor e onde o leitor passa a
viver e sentir a emoção de quem carrega consigo o amor do seu pequeno-grande
lugar. Por isso, conforme Sartre: “A existência precede a essência...”.
A
narrativa de Leves Sombras mostra um cotidiano onde o relógio não é percebido,
pois personagens e leitor não notam o movimento temporal e, conforme o conceito
de Mihaly Csikszentmihalyi, psicólogo húngaro, quando indivíduos estão
envolvidos em algo onde não notam o tempo passar é porque atingiram um estado
de felicidade. É viver a “querida cidade”, título do romance do imortal Antônio
Torres. Esse estado de espírito pode ser sentido nos versos de Moraes Moreira e
Fausto Nilo: “Felicidade é uma cidade pequenina/ é uma casinha é uma colina/
qualquer lugar que se ilumina/ quando a gente quer amar...”.
No
livro de Gênesis (4:17-26) é através do perverso Caim, após sua ingratidão
contra Deus e a deslealdade contra o seu irmão, quem dá origem à cidade: “Caim
construiu uma cidade e a chamou de Enoque, o nome do seu filho.”, mas há relatos
das primeiras cidades surgidas há aproximadamente 4000 AEC, na mesopotâmia,
região entre os rios Tigres e Eufrates. Alguns arqueólogos arriscam a dizer: “a
primeira cidade foi Eridu, na Suméria, mas a primeira civilização foi em Uruk,
situada a leste do rio Eufrates.”. Também surgiu, aproximadamente, em 1800 AEC,
na Mesoamérica, na civilização pré-colombiana, as cidades maias. A partir daí,
por volta de 600 AEC, surge a cidade de Atenas, na Grécia, marcada pela invasão
dos povos aqueus, eólios e jônios e foi o principal centro urbano da pólis
(cidade-Estado). Em Atenas surgiu grande
parte do pensamento e histórias que
fascinam a humanidade até os dias atuais.
Desse
modo, Luiz Eudes leva o leitor a uma experiência com enredo encantador, onde
pessoas simples são protagonistas, com subtextos bem trabalhados, mantendo a
tensão num tom ideal durante a narrativa, onde o signo linguístico dos falares
de um povo estabelece uma relação ― conforme a teoria de Saussure ― entre um significante, representação da imagem
acústica de uma palavra, e um significado, isto é, o conceito da palavra, sua representatividade. Sendo
assim, o significante e o significado criam asas, unindo-se a outros signos
linguísticos, levando o leitor a ser o intérprete de um mundo, isto é, desta
cidade do coração, e, o ser, a partir de suas reminiscências, passa a
compreender o dasein, expressão de
Heidegger para expressar o ser-no-mundo, ou seja, “ser” e não “estar”, no
sentido de existir a partir das experiências de um pequeno mundo.
As
prosas do cotidiano, além de gerar imagens através da linguística saussuriana,
conseguem, transcender na relação fenomenológica do sujeito e objeto
(leitor e cidade); é uma “fotografia”,
onde segundo a semiologia de Peirce, pode ser analisada de acordo a representação,
e está apta a produzir nos seus receptores, isto é, interpretante final (o
leitor), um efeito, e novas leituras, a partir de cada fragmento (conto), do
signo (cidade) tomada como modelo nos três elementos formais de qualquer
experiência semiótica, ou seja, energético (a curiosidade), emocional (o
sentimento) e lógico (interpretação da imagem na mente do leitor) em que cada
narrativa provoca. Por isso, Cortázar (1994, p.371) fala da relação do conto
com a fotografia: “[...] recortar um fragmento da realidade, impondo-lhe certos
limites, mas de tal forma onde esse recorte atue como uma explosão para expor
uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica, transcendendo
espiritualmente, o campo coberto pela câmera.”
Neste
viés, a obra Leves Sombras mostra o cotidiano de um lugar, ou seja, das noites
de festa e da paixão da infância; do amor philia entre companheiros; do
historiador ao manter viva a memória de sua terra; do suspense nas madrugadas;
dos causos de política; do sagrado e do profano; da fé mimética dos passos de
São José a caminho do Egito; do herói; do valor de uma gota d’água; da astúcia
de Roberval; da graça da madrinha de Zé Pequeno, do viajante inveterado, do
bacharel, da vingança da enxada e do golpe da máquina fotográfica; dos tempos
de sonhos; do futebol no rádio de pilha; das tardes de chuva e do cheiro de
terra molhada; da tarde indo embora lentamente; do silêncio da noite; de um
pouco de loucura; dos boêmios; da música; da aurora; do primeiro encontro com o
mar; e a vontade de não haver o fim das histórias, mas sejam as palavras de
Belchior em sua obra: “O amor, humor das praças/ cheias de pessoas/ agora eu
quero tudo/ tudo outra vez...”
Por
fim, essa breve viagem leva o leitor à repetição sadia do inconsciente
individual a partir do inconsciente coletivo, ou seja, rememorando um tempo
bom, pois segundo Nasio (2012, p. 34) “[...] a repetição é uma tendência, uma
força que avança e nos arrasta para nos tornamos mais de nós mesmos. A
repetição tem a finalidade de produzir três efeitos: preservar a unidade de
indivíduo, desenvolver ao máximo potencialidades e consolidar o sentimento de
que somos o mesmo ontem e hoje.”. Sim, é isto que propõe Luiz Eudes em sua
obra, ou seja, rememorar um lugar, uma gente, um tempo, de forma a manter viva
enquanto há vida, memórias que cada ser
carrega em si.
REFERÊNCIAS
BELCHIOR, Antônio Carlos. TUDO OUTRA VEZ. Álbum: Era
uma vez um homem e o seu tempo, WEA, 1979.
BÍBLIA ONLINE. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/4/17-26>. Acesso em 28 de agosto de 2022
CORTÁZAR, Julio. Algunos aspectos del cuento. Obra crítica/2. Madrid: Alfaguara, 1994, pp. 365-385.
CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. A descoberta do fluxo – a psicologia do envolvimento na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
EUDES, Luiz. Leves Sombras. São Paulo: Essencial, 2022.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: parte II. 2ºed. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis. Vozes, 1998.
MOREIRA, Moraes. NILO, Fausto. PÃO E POESIA. Álbum: Pão e Poesia. Ano: 1995.
NASIO, Juan-David. Por que repetimos os mesmos erros. Tradução: André Telles. 2º ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
PEIRCE, C. S. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
SANTAELLA, L. O que é semiótica. 20. reimp. São Paulo: brasiliense, 2004a.
SANTAELLA, L. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. 2. ed. São Paulo: Pioneira , 2004b.
SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004c.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978 [1946]. (Os Pensadores).
SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes, Isidoro Blikstein Cultrix, São Paulo: 1975.
URUK: A PRIMEIRA CIDADE. Disponível em: < https://super.abril.com.br/historia/uruk-a-primeira-cidade/>. Acesso em 28 de agosto de 2022.
[1]
Escritor, músico, poeta e professor,
com formação em Engenharia, Filosofia, Matemática e Psicanálise. E-mail: <renato.flamenco@gmail.com>.
Nenhum comentário:
Postar um comentário