quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

A EXISTÊNCIA E A ESSÊNCIA A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS EM UM PEQUENO MUNDO: A CONTEMPLAÇÃO DE UM POVO E UMA CIDADE EM LEVES SOMBRAS

Por Renato Luiz de Oliveira Ferreira[1]

 

Ser escritor é criar mundos, personagens, narrativas, onde a receita é a criatividade com palavras na dosagem, sabor e temperatura, na medida ideal, seja em poesia, prosa... gerando um clímax de forma a levar o leitor a uma viagem transformadora, seja ao passado (em fatos históricos), no presente (na escrita do seu tempo), ou ao futuro (num mundo de possibilidades), pois escrever é voar na imaginação com alma leve, é poder, sofrer, rir, chorar, decidir e, o mais importante, realizar a práxis, uma ação transformadora no mundo. Por isso, o escritor é imortalizado através de sua arte.

Luiz Eudes, do arraial do Junco, hoje cidade de Sátiro Dias-BA, primo de dois imortais da literatura brasileira: Décio Torres, membro da Academia de Letras da Bahia e Antônio Torres, membro da Academia Brasileira de Letras ― além de ter outros familiares craques na escrita literária ―, vem através de sua obra, Leves Sombras, dividida numa coletânea de contos, levar o leitor a uma viagem através do tempo, numa cidade viva no âmago do autor e onde o leitor passa a viver e sentir a emoção de quem carrega consigo o amor do seu pequeno-grande lugar. Por isso, conforme Sartre: “A existência precede a essência...”.

A narrativa de Leves Sombras mostra um cotidiano onde o relógio não é percebido, pois personagens e leitor não notam o movimento temporal e, conforme o conceito de Mihaly Csikszentmihalyi, psicólogo húngaro, quando indivíduos estão envolvidos em algo onde não notam o tempo passar é porque atingiram um estado de felicidade. É viver a “querida cidade”, título do romance do imortal Antônio Torres. Esse estado de espírito pode ser sentido nos versos de Moraes Moreira e Fausto Nilo: “Felicidade é uma cidade pequenina/ é uma casinha é uma colina/ qualquer lugar que se ilumina/ quando a gente quer amar...”.

No livro de Gênesis (4:17-26) é através do perverso Caim, após sua ingratidão contra Deus e a deslealdade contra o seu irmão, quem dá origem à cidade: “Caim construiu uma cidade e a chamou de Enoque, o nome do seu filho.”, mas há relatos das primeiras cidades surgidas há aproximadamente 4000 AEC, na mesopotâmia, região entre os rios Tigres e Eufrates. Alguns arqueólogos arriscam a dizer: “a primeira cidade foi Eridu, na Suméria, mas a primeira civilização foi em Uruk, situada a leste do rio Eufrates.”. Também surgiu, aproximadamente, em 1800 AEC, na Mesoamérica, na civilização pré-colombiana, as cidades maias. A partir daí, por volta de 600 AEC, surge a cidade de Atenas, na Grécia, marcada pela invasão dos povos aqueus, eólios e jônios e foi o principal centro urbano da pólis (cidade-Estado). Em Atenas surgiu  grande parte do pensamento e  histórias que fascinam a humanidade até os dias atuais.

Desse modo, Luiz Eudes leva o leitor a uma experiência com enredo encantador, onde pessoas simples são protagonistas, com subtextos bem trabalhados, mantendo a tensão num tom ideal durante a narrativa, onde o signo linguístico dos falares de um povo estabelece uma relação ― conforme a teoria de Saussure  ― entre um significante, representação da imagem acústica de uma palavra, e um significado, isto é, o conceito  da palavra, sua representatividade. Sendo assim, o significante e o significado criam asas, unindo-se a outros signos linguísticos, levando o leitor a ser o intérprete de um mundo, isto é, desta cidade do coração, e, o ser, a partir de suas reminiscências, passa a compreender o dasein, expressão de Heidegger para expressar o ser-no-mundo, ou seja, “ser” e não “estar”, no sentido de existir a partir das experiências de um pequeno mundo.

As prosas do cotidiano, além de gerar imagens através da linguística saussuriana, conseguem, transcender na relação fenomenológica do sujeito e objeto (leitor  e cidade); é uma “fotografia”, onde segundo a semiologia de Peirce, pode ser analisada de acordo a representação, e está apta a produzir nos seus receptores, isto é, interpretante final (o leitor), um efeito, e novas leituras, a partir de cada fragmento (conto), do signo (cidade) tomada como modelo nos três elementos formais de qualquer experiência semiótica, ou seja, energético (a curiosidade), emocional (o sentimento) e lógico (interpretação da imagem na mente do leitor) em que cada narrativa provoca. Por isso, Cortázar (1994, p.371) fala da relação do conto com a fotografia: “[...] recortar um fragmento da realidade, impondo-lhe certos limites, mas de tal forma onde esse recorte atue como uma explosão para expor uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica, transcendendo espiritualmente, o campo coberto pela câmera.”

Neste viés, a obra Leves Sombras mostra o cotidiano de um lugar, ou seja, das noites de festa e da paixão da infância; do amor philia entre companheiros; do historiador ao manter viva a memória de sua terra; do suspense nas madrugadas; dos causos de política; do sagrado e do profano; da fé mimética dos passos de São José a caminho do Egito; do herói; do valor de uma gota d’água; da astúcia de Roberval; da graça da madrinha de Zé Pequeno, do viajante inveterado, do bacharel, da vingança da enxada e do golpe da máquina fotográfica; dos tempos de sonhos; do futebol no rádio de pilha; das tardes de chuva e do cheiro de terra molhada; da tarde indo embora lentamente; do silêncio da noite; de um pouco de loucura; dos boêmios; da música; da aurora; do primeiro encontro com o mar; e a vontade de não haver o fim das histórias, mas sejam as palavras de Belchior em sua obra: “O amor, humor das praças/ cheias de pessoas/ agora eu quero tudo/ tudo outra vez...”

Por fim, essa breve viagem leva o leitor à repetição sadia do inconsciente individual a partir do inconsciente coletivo, ou seja, rememorando um tempo bom, pois segundo Nasio (2012, p. 34) “[...] a repetição é uma tendência, uma força que avança e nos arrasta para nos tornamos mais de nós mesmos. A repetição tem a finalidade de produzir três efeitos: preservar a unidade de indivíduo, desenvolver ao máximo potencialidades e consolidar o sentimento de que somos o mesmo ontem e hoje.”. Sim, é isto que propõe Luiz Eudes em sua obra, ou seja, rememorar um lugar, uma gente, um tempo, de forma a manter viva enquanto há vida,  memórias que cada ser carrega em si.

 

REFERÊNCIAS

 

BELCHIOR, Antônio Carlos. TUDO OUTRA VEZ. Álbum: Era uma vez um homem e o seu tempo, WEA, 1979.

BÍBLIA ONLINE. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/4/17-26>. Acesso em 28 de agosto de 2022

CORTÁZAR, Julio. Algunos aspectos del cuento. Obra crítica/2. Madrid: Alfaguara, 1994, pp. 365-385.

CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. A descoberta do fluxo – a psicologia do envolvimento na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

EUDES, Luiz. Leves Sombras. São Paulo: Essencial, 2022.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: parte II. 2ºed. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis. Vozes, 1998.

MOREIRA, Moraes. NILO, Fausto. PÃO E POESIA.  Álbum: Pão e Poesia. Ano: 1995.

NASIO, Juan-David. Por que repetimos os mesmos erros. Tradução: André Telles. 2º ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

PEIRCE, C. S. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

SANTAELLA, L. O que é semiótica. 20. reimp. São Paulo: brasiliense, 2004a.

SANTAELLA, L. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. 2. ed. São Paulo: Pioneira , 2004b.

SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004c.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978 [1946]. (Os Pensadores).

SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes, Isidoro Blikstein Cultrix, São Paulo: 1975.

URUK: A PRIMEIRA CIDADE.  Disponível em: < https://super.abril.com.br/historia/uruk-a-primeira-cidade/>. Acesso em 28 de agosto de 2022.

  


[1] Escritor, músico, poeta e professor, com formação em Engenharia, Filosofia, Matemática e Psicanálise. E-mail: <renato.flamenco@gmail.com>.

 

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