sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

MEMÓRIAS EM PLENO MOVIMENTO: A RELEITURA DE UM TEMPO, UM POVO E UM LUGAR EM GADO BRAVO

  

Por Renato Luiz de Oliveira Ferreira[1]

 

O poeta é aquele que usa a sensibilidade, a criatividade e a expressão artística para plantar, semear e colher os ingredientes da vida e transformá-los em alimento para a humanidade, na dosagem, no momento e no sabor que cada alma necessita. O poema é a imagem da alma do poeta num momento de distração e encanto provocado pela inspiração. A poesia é a união de todos estes elementos em plena harmonia. Já o escritor é um inventor de mundos, personagens, narrativas, um amante da prosa, que leva o leitor, através da semiologia e linguística saussuriana e da semiologia peirceana,  a uma experiência adimensional a partir de cada memória exposta em suas narrativas, através do signo (povo e lugar) gerando emoção.

João Rodrigues Pinto, professor, escritor, poeta, graduado em Letras, mestre em Teatro, doutor em linguística, pai de Henrique e Laisa, eterno namorado de Leila, menino prodígio, de sorriso fácil, nascido em Licínio de Almeida – BA, vem através de sua recente obra, “Gado Bravo” ― recordações de um tempo vivo ―,  dividida em crônicas, levar o leitor a reviver momentos, ou  seja, sentir o cheiro e ouvir o som do passado, degustar reminiscências de uma geração que enche de orgulho o âmago dos licinienses.

Gado Bravo é uma obra significante, pois JRP mergulha, através das narrativas, num  mundo onde ele é narrador-personagem, pois vivenciou ao lado de sua mãe, seu pai, irmãos, tios, avós, amigos, professores, pessoas conhecidas e desconhecidas, a construção de um lugar, a formação de um povo, pois a vida, apesar de ser uma experiência individual-temporal, com origem e objetivo desconhecidos, para a sua existência há a necessidade do outro. Por isso Lacan (1985) diz que, para o encontro com o grande Outro é preciso também a aproximação do ser (sujeito) com o pequeno outro para formar um pequeno todo; além da junção do ser mais o outro, mais o Outro, para formar o grande Todo, pois para  a existência humana é necessário o contato com o próximo e com o mundo, formando assim o fenômeno da alteridade.

As narrativas de Gado Bravo mostra que, além da alteridade há o encantamento, onde o tempo é imperceptível, pois conforme o pensador húngaro Mihaly Csikszentmihalyi (2020), quando pessoas estão envolvidas em algo e não percebem o tempo fluir, é porque atingiram um estado de felicidade. O pequeno lugar descrito em Gado Bravo relembra passagens da crônica “A cidadezinha”, de Rachel de Queiroz:

 

[...] Era  uma  vez  uma  cidadezinha,  dessas  muito  antigas.  Pequena,  mal  tinha  umas  cinco  ruas  meio  tortas  e desencontradas. As casas, nessas ruas, eram quase todas baixinhas. No meio delas uns  dois  sobrados,  o  casarão  da  escola  e  o  outro  casarão  muito  feio,  com  janelas  gradeadas,  onde  ficava a cadeia.

[...] Mas a graça daquela cidadezinha era a igreja, que a gente até poderia chamar de igrejinha. (QUEIROZ, 1992.p.3).

 

A igrejinha é o marco inicial de muitas cidades, mas a lagoa Gado Bravo é o centro do universo liciniense, onde ao amanhecer a luz solar é absorvida pela natureza e, ao som do canto do pássaros, do apito do trem lá de longe... do encantador voo dos beija-flores  e da graça do sorriso dos anjos, o Criador colore o novo dia, surpreendendo as crianças, extasiando os românticos e inspirando o poeta, que transforma em arte esse instante. No fim da tarde, exaustos, todos se recolhem, mas o poeta agora observa o luar refletindo a luz do astro-rei na lagoa, que, imediatamente, a retransmite para a cidadezinha modesta, tão cheia de graça e esplendor, de gente que só quer viver cada minuto dessa viagem chamada vida. E assim, o tempo para e o momento volta a virar arte poética.

A história da lagoa que concebeu uma cidade, e guarda em suas águas os segredos de um povo, lembra o livro de Gênesis (2:8-15), onde o Senhor planta um jardim no Éden, e depois faz brotar da terra toda árvore agradável e boa para o alimento, a árvore do conhecimento do bem e do mal e, de onde sai um rio para regar um jardim, e depois se divide em quatro novos rios, ou seja, Pisom, Giom, Tigre e Eufrates.

Neste viés, JRP, através das crônicas de um tempo vivo, leva o leitor a um espetáculo tal qual uma peça teatral, em três movimentos, onde há as vertentes com características do drama, do melodrama, da ópera, do monólogo, musical, entre outros, pois o cotidiano a partir de sua infância, e do amor philia pela sua gente faz manter viva as memórias de sua cidadezinha, dos causos, e de experiências transformadoras, onde expõe suas emoções, aprendizados, que o transforma em autor de uma história que leva ao autoconhecimento e reflexão para entender o presente e a importância de outrem em sua formação humanística, pois de acordo com Lyra (2005, p31, apud Motta, 2011, p.2), “este lugar – espacial e temporal – só é ocupado por uma única pessoa no transcorrer da autobiografia da sua vida. Esta autobiografia é escrita por cada indivíduo como autor. O sujeito é autor de sua própria história, simplesmente porque não há outra possibilidade para que ele exista.”.

É através da literatura que JRP estabelece o encontro consigo mesmo, o que de certa forma influencia as novas gerações para realizarem, com consciência, a transcendência para dar continuidade à escrita da história de Licínio de Almeida.

O primeiro movimento da obra de JRP tem o título de “Narrativas da boca do vento” e tem início com a crônica “O trem mal assombrado”, e faz lembrar as histórias de visagens da infância, mas que traz do fundo da alma a melodia da obra de Heitor Villa-Lobos, “O trenzinho caipira” e os versos de Ferreira Gullar: “Lá vai o trem com o menino/ Lá vai a vida a rodar/ Lá vai ciranda e destino/ Cidade e noite a girar/ Lá vai o trem sem destino/ Pro dia novo encontrar/ Correndo vai pela terra/ Vai pela serra/ Vai pelo ar...” E a viagem de JRP segue em “A Lapa do Bom Jesus”, onde a emoção bate forte ao lembrar da infância com seus irmãos: Lena, Osmar, Nenê e Tida, seus pais, entre outros parentes e amigos. E segue a romaria, pois o importante da caminhada é a companhia.

As crianças e seus voos rasantes degustam a vida em “Os meninos da boca do vento”. E chega o mês de junho o com frio, as férias escolares e as fogueiras em: “São João passou por aí?”. Assim as lágrimas transbordam do leitor mais sensível e que traz à memória os versos da canção “Noites brasileiras”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas: “Ai que saudades que eu sinto/ Das noites de São João/ Das noites tão brasileiras nas fogueiras/ Sob o luar do sertão...”. Em “A janela de dona Emília” surge o drama da infância dolorosa em uma estranha menina. Em “O sumiço do forasteiro” há o suspense que lembra, do ponto de vista técnico e narrativo, cenas de obras de Alfred Hitchcock.

Na incrível viagem de JRP há “A esperança de cada dia” e as questões existenciais e o maior grau de amor na humanidade, o materno. Em “Crônica do paraíso” há o corte metafórico do cordão umbilical, um drama lacrimoso. A presença feminina retorna de forma dramática em “A menina da beira da lagoa” e sua grandeza até no nome, Magna. A crônica “O médico da família” é uma homenagem ao doutor Áureo, um ser humano brilhante, carismático. Ele deixou um legado importante para os licinienses. Em “A menina e o vaga-lume” há novamente a presença da alma feminina e o brilho de uma estrela iluminando a lagoa Gado Bravo. “O diário de Laisa” é uma declaração de amor de um pai a uma garota feliz e sonhadora.

A música não poderia faltar na viagem ao passado de JRP. Em “Banda voou” a emoção faz lembrar os versos da canção de Milton Nascimento e Tunai: “Certas canções que ouço/ Cabem tão dentro de mim/ Que perguntar carece/ Como não fui eu que fiz/ Certa emoção me alcança/ Corta minha alma sem dor/ Certas canções me chegam/ Como se fosse o amor..”. É esse amor por sua gente que transborda também em “O cinema de minha infância” e a descoberta do mundo através da tela, enchendo de emoção os corações dos meninos da Boca do Vento e que foi fonte de inspiração para a criação de do grupo teatral Sol Amarelo. Assim “O Sol Amarelo e o fazer teatral” fecha o primeiro movimento com a encenação de momentos que entraram para a atemporalidade.

O segundo movimento da obra de JRP tem o título de “As algemas de Lucas” que tem início com a crônica “O olhar de Lucas” e a dialética de um sonho literário. Em “Antes que o galo cante” mostra a angústia, desilusão e dor. Em “A cidade de lona” há o início do lado humanístico com foco nas questões do homem do campo e a luta da terra para quem nela trabalha. Em “A pedagogia da terra” há a luta pela reforma agrária através do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e os ideais de Paulo Freire, Karl Marx, entre outros pensadores, que lutaram pela libertação dos oprimidos. Também lembra os ideais da Teologia da Libertação. Em “As vozes da feira” há um diálogo que remete ao cotidiano popular e a luta pela sobrevivência.

A angústia de Jesus e a sua morte que é revivida diariamente através das ações humanas  ressurge em “O mergulho na consciência”. Faz Lembrar o aforismo 125 do livro “A gaia ciência” de Nietzsche: “O Homem Louco – […] Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”.

A presença feminina reaparece em “A lógica do conhecimento” e o poder dos violentos. Em “Recolhendo os pedaços” há o renascimento para a continuação do sonho. Em “Sangue e sorvete de morango” ressurge a essência da música Domingo no Parque, de Gilberto Gil. Em “Manoel Viana” há a experiência de um efêmero sopro suave e profundo que tenta penetrar no coração de pedra do mundo. Em “O voo do bico-de-fogo” há uma alusão ao sertanejo da obra “Os sertões”, de Euclides da Cunha. Em “O passarinho da asa quebrada” há o exemplo da citação de Luciano de Crescenzo: “Somos todos anjos de uma asa só; só podemos voar abraçados uns aos outros.”. Em “A gênese da pedagogia da alternância” há o exemplo da angústia entre as dualidades vida e morte; alegria e dor; chegada e partida. Em “ Terra dos cristais” surge a história do amor da personagem pela terra, pela sua gente e a valorização de suas memórias. “O homem, o tempo e o pôr-do-sol” mostra a história do homem, o seu tempo e sua presença como parte do mundo.

O terceiro e último movimento da obra de JRP tem o título de “Entre a prosa e o verso” e tem início com a poesia “O Homem” onde o eu lírico fala do sonho, realização e felicidade. Em “Flordenice” o eu lírico ressurge com o amor philia. No poema “Joana” é resgata a memória da figura feminina e sua labuta. Em “Navegação” surge no eu lírico o amor eros. No poema “No sertão baiano” o eu lírico traz a riqueza do nordeste e o dialeto sertanejo. Em “O saco da onça” há a lenda da suçuarana e os causos de um povo. No poema “Cálido” ressurge as memórias da cidadezinha, os rios, aves e anjos.

A beleza da alma feminina surge em “Canção para Luiza”. Em “Míngua” ressurge o grito da criança e a utopia infantil, sempre presente na obra de JRP. A figura feminina, também muito presente na obra de JRP, ressurge com muita beleza nos poemas “Ana Batista” e “Margarida”. A alma do poeta ressurge no eu lírico de  “Extremo”. E a emoção novamente transborda através de Guilherme Rodrigues Pinto nos verso de “Terra de Estranhos”. A saudade, o amor, o pranto, a canção, a amizade e o desejo permanecem vivos em “Reveses da memória”, “Guina”, “Nostalgia” “Intensidade”, “Poetizando”, “Cartas”, “Desver”, “Tormenta”, “Canção do Brio”, “Legião”, “O nosso tempo”, “Os meninos”, “Ferrovia”, “Velho garoto”, “Fernandando” e “Holocausto”.

E chega ao fim a emocionante viagem lembrando os versos de Milton Nascimento e Fernando Brant em Encontros e despedidas: “São só dois lados da mesma viagem/ O trem que chega é o mesmo trem da partida/ A hora do encontro é também despedida/ A plataforma dessa estação é a vida desse meu lugar/ É a vida desse meu lugar, é a vida...”. 

Dessa forma o menino João segue a sua caminhada levando consigo as experiências adquiridas no contato com a sua gente. As narrativas de Gado Bravo são tão saborosas que até o leitor que não teve o privilégio de vivenciá-las sente saudade desse tempo, pois ao terminar a leitura sente que também faz parte dessa experiência ímpar, conforme diz o eu lírico do poema de Renato Luiz de Oliveira Ferreira:

 

      PRETÉRITO PERFEITO

 

Senti saudade de um tempo “que não vivi”

Fez falta porque foi bom

Foi bom porque valeu a pena

Valeu a pena porque sorri

Sorri porque fui feliz

Fui feliz porque amei

Lá bem longe... onde plantei minha arte

Foi assim... A vida é um vai e vem retado.  (FERREIRA, 2014).

 

Por fim, sabe quem inventou essa coisa chamada amor? O mesmo que idealizou essa tal de saudade. Sabe o que uma coisa tem a ver com a outra? Ou seja, já sentiu a falta de alguém que até chorou? Ah... deve sentir essa dor quase todos os dias. Para o Criador o seu sentimento é inspirador. Sabe como pode chamar isso? Daquilo que o poeta mais rima com dor... Por isso Gado bravo é um gesto de amor.



[1]  Escritor, músico, poeta e professor, com formação em Engenharia, Filosofia, Matemática e Psicanálise. E-mail: <renato.flamenco@gmail.com>.

 

REFERÊNCIAS


BÍBLIA ONLINE. Genesis 2. Disponível em: < https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/2>. Acesso em 29 de dezembro de 2022

CORTELLA. Mario Sergio. Qual é a tua obra? Inquietações propositivas sobre a Gestão, Liderança e Ética. São Paulo: Vozes; 2007.

FERREIRA, Renato Luiz de Oliveira. Pretérito Perfeito. Disponível em: < http://renatoluizdeoliveiraferreira.blogspot.com/2014/12/preterito-perfeito.html>. Acesso em 30 de dezembro de 2022.

LACAN, J. O eu e o outro. In: O SEMINÁRIO — Livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979.       

LACAN, J. Introdução do grande outro. O SEMINÁRIO — Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.

CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Fluxo: A psicologia do alto desempenho. São Paulo: Objetiva, 2020.

GONZAGA, Luiz. DANTAS, Zé. Álbum: Noites Brasileiras, 1954.

GULLAR, Ferreira. Melhores poemas. Sel. Alfredo Bosi. 6. ed. São Paulo: Global, 2000.

MOTTA, Flavia Encarnação. Dialogicidade e narrativa em redações de crianças. Universidade Federal do Espírito Santo, 2011. Disponível em: < https://sappg.ufes.br/tese_drupal//tese_3981_.pdf>. Acesso em: 29 de dezembro de 2022.

NASCIMENTO, Milton. Álbum. Encontros e Despedidas. Polygram, 1985.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. 2º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

PINTO, João Rodrigues. Gado Bravo ― recordações de um tempo vivo. Vitória da Conquista, BA. Editora do Autor, 2021.

QUEIROZ, Rachel de. Andira. São Paulo: Siciliano, 1992.

TUNAI; NASCIMENTO, M. Certas canções. In: NASCIMENTO, M. Anima. Ariola, 1982. 1 disco sonoro. Lado B, faixa 3.




2 comentários:

Anônimo disse...

meu amigo amado e amável: você é meu presente atemporal, sempre pronto a exprimir em versos perfeitos e prosas simples e ao mesmo tempo profundas, as entrelinhas das mais variadas narrativas. Sua escrita flui e encanta pela generosidade que se transfigura em outra narrativa e outros poemas e outros olhares e outros sentimentos. Renato, pinho que guardo no lado esquerdo do peito e parafraseando Milton Nascimento, mesmo que o tempo e a distancia digam não, continuemos escrevendo e descrevendo as dores e os amores do mundo, sem perder de vista a flor do mandacaru que exala realismo, alteridade e muita poesia. Amei sua resenha e fiquei em lágrimas diante de um reconhecimento tão peculiar. Nessas horas acredito que vale a pena escrever, pois a escrita tem o dom da ressignificação e quando ela perpassa as mãos de um escritor como Renato Ferreira, meu amigo de verdade, sonhos e esperanças, ela se eleva e vai para além do céu. Obrigado por existir meu anjo. Nunca deixe de ser essa pessoa linda!

Anônimo disse...

João Rodrigues Pinto, querido amigo-irmão, que reflexão linda a sua.

Eu também sou grato a Deus por ser seu amigo, por também gostar de poesia, prosa, dos causos e desta viagem chamada vida.

Fiquei muito feliz em escrever sobre você, sua obra e sua alma generosa.

Parabéns, pelo seu gesto de amor ao povo e à cidade de Licínio de Almeida.

Um abraço fraterno.