quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

A SAGACIDADE DA NARRATIVA DE HISTÓRIAS ROUBADAS E UM DIÁLOGO COM A CONTEMPORANEIDADE

  

Por Renato Luiz de Oliveira Ferreira[1]

 

 Há uma tendência natural na literatura, isto é, o diálogo com o passado, pois as memórias são ricas fontes de informações e inspiração. Desde a infância há um fascínio da humanidade com a história. De forma ilimitada há a tentativa de se chegar ao inconsciente individual e coletivo e, se possível, criar hipóteses para as questões metafísicas, porém é algo notável quando o escritor é capaz de dialogar com o seu tempo, utilizando o passado como experiência e o futuro como possibilidade, vivendo corajosamente o presente com a sua força transformadora, pois conforme Ferreira (2021): “Não há como resistir às mudanças naturais das coisas; se for o momento certo não há barreira que suporte, pois a força da transformação (do novo), é imbatível.”.

É neste viés que Décio Torres Cruz, menino de sorriso largo, Ph.D em Literatura Comparada pela State University of New York, EUA, professor e pesquisador da UFBA, imortal da Academia de Letras da Bahia, irmão do também imortal Antônio Torres, membro da Academia Brasileira de Letras, nascidos no arraial do Junco, hoje cidade de Sátiro Dias-BA, de uma família de excelentes escritores ― essa história de talentos familiares rememora os ilustres irmãos santamarenses, Caetano Veloso e Maria Bethânia, e seus familiares brilhantes. Sendo assim, Décio Torres vem através de sua recente obra, “Histórias roubadas”, lançada pela Editora Penalux (2022), dividida numa coletânea de contos, levar o leitor a despertar sobre o seu tempo.

O título da obra de DT faz uma alusão às palavras de Antoine-Laurent de Lavoisier: “Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.”. Desta forma, o autor pega os fatos do cotidiano para compor novas histórias, da mesma forma que o compositor ao fazer um samba, uma canção de amor ou uma dedicatória. É a mimese platônica e aristotélica da representação do universo perceptível, onde para Platão a criação é vista como um rapto, ou seja, uma imitação, e, para Aristóteles, a arte é a representação do mundo. Nada muito diferente da essência da obre de DT.

A sagacidade da narrativa de “Histórias roubadas” provoca uma surpresa ao leitor, principalmente àqueles acostumados à leitura de contos que remete ao passado. DT traz algo diferente, tal qual João Gilberto, ao provocar um estado de encantamento com a precisão rítmica e as harmonias bem trabalhadas no seu violão, trazendo novas possibilidades e sonoridade à MPB, e uma forma de cantar que faz lembrar Henri Salvador. Os acordes “roubados” do jazz, com um ritmo sutilmente captado do samba, numa execução em um andamento mais lento, se transforma num estilo que passa a ser chamado de “Bossa nova”.

Ao ler “Histórias roubadas” o leitor mais experiente pode ter a sensação de ter encontrado um João Gilberto da literatura, ou seja, a forma de escrever contos de DT é jazzística, tendendo à Bossa nova, mas não colocando o termo como algo complexo, mas diferente, novo, agradável, surpreendente, atemporal, isto é, uma antítese, pois tem extrema classe sem deixar a simplicidade de lado.

DT demonstra com sabedoria que a literatura está em pleno movimento porque parece ser uma energia potencial, mas é a própria energia cinética. Por isso os contos são provocantes, tal qual René Magritte ao transcender com sagacidade na tela “A Clarividência”, isto é, cria um autorretrato pintando um pássaro a partir de um ovo tomado como modelo.

A narrativa de DT começa com “O ladrão de histórias” e o surpreendente final onde o leitor passa a ser cúmplice do desfecho. Em seguida há “Aula de Português”  e a capacidade da língua em criar histórias sobre erros gramaticais, ou seja, é um chiste, a partir da suspeita do diálogo das personagens, professora e aluna, sobre  um erro gramatical daquela que é, segundo o eu lírico do primeiro verso do poema “Língua Portuguesa” de Olavo Bilac: “Última flor do Lácio, inculta e bela”. Já em “Fronteiras do encantamento” a emoção transborda dos olhos do leitor sensível, pois lembra os versos da música “Boas Festas”, do baiano Assis Valente: “[...] Eu pensei que todo mundo/ Fosse filho de Papai Noel/ E assim felicidade/ Eu pensei que fosse uma/ Brincadeira de papel.” Em “A aluna deslocada e tresloucada” há um cômico diálogo: “Sei davvero così o stai solo fingindo o scherzando?” (você é assim mesmo ou só está fingindo ou brincando?).

Em “O Lamaçal” há a luta pela sobrevivência contra a “revolução dos bichos”. Em “O mistério dos jogos mentais” há um drama em que remete à obra freudiana, Interpretação dos sonhos, onde o autor afirma que o sonho é a realização de um desejo. Em “As tribulações de Anaí” há a Lei da Causa e Efeito, causalidade, relacionada com a Lei do Karma. “Margô e seus sonhos postergados” lembra os versos de Caetano Veloso na música Língua:“[...] a poesia está para a prosa, assim como o amor está para a amizade/ E quem há de negar que esta lhe é superior?”. Em “Sobre ondas e bancos de areia” há uma reflexão sobre os presságios da vida. Em “As tias” há a mostra de que felicidade é um estado de espírito.

A metafísica da vida do personagem passeia na bela e enigmática narrativa de “Estradas possíveis e as trilhas não percorridas”. Em “Maria Hortência com H” surge o eco dos conflitos da cidade grande onde o leitor sente as presenças de Hilda Hilst e Clarice Lispector. Em “A avó do Wesley”, conforme o autor sugere, deve ser lido lembrando Caio Fernando Abreu e Roberto Drummond, ou seja, a angústia do cotidiano. Em “A lua sobre as veredas tropicais” há a desilusão e o renascimento através da esperança. Em “Zuleica, minha irmã” há um exemplo de constrangimento e a arte de “pagar mico” nas aulinhas de inglês. Em “O caso do psicólogo” há o incrível caso das variáveis X e KM, onde Freud, se pudesse, sorriria da paixão, da libido narcísica  e do recalque.

A energia psíquica, o impulso e o desejo, que daria uma boa conversa entre Freud, Jung, Lacan e Nelson Rodrigues, ressurgem em “A divina tragédia humana”. Em “Um dia na periferia da vida” há mais uma vez a forte presença feminina, que mostra os desafios do cotidiano da mulher na metrópole e a dinâmica do seu tempo no transporte público. A libido freudiana volta a aquecer o amor eros e seu romantismo adolescente em “A moreninha suburbana em Paquetá”. Já “A revolta do personagem” traz o pensamento de Oscar Wilde em “A decadência da mentira e outros ensaios”, e a frase: “A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. Em “Lucia e Alfredo” surge o eu lírico de Vinícius de Moraes com a frase. “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.”.

Conforme Julio Cortázar: “O romance vence sempre por pontos, enquanto o conto deve vencer por nocaute”. Isso ocorre em “Era uma vez uma cidadezinha”, onde DT fecha com chave de ouro.

Por fim,  é uma obra libertadora e dialoga com o seu tempo com ousadia ao expor os temas polêmicos do cotidiano, causadores de desconforto numa sociedade submissa aos preconceitos desde o inconsciente coletivo. Sendo assim, “Histórias roubadas” e seu logos, preso ao senhor da razão para os poetas e, para Agostinho, o instante entre o passado (lembranças) e o futuro (expectativas), onde Einstein definiu como uma teimosa ilusão e, para  Heidegger: “[...] eu mesmo, e cada qual seria o tempo; e nós, no nosso estar uns com os outros, seríamos o tempo...”, e onde para Agamben (2009), é a relação singular com o tempo, é a contemporaneidade, com movimento constante no devir para a transformação do mundo. Eis, pois, a práxis de um grande escritor e poeta através de uma obra literária transformadora.

 

REFERÊNCIAS


AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo In. ____O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.

BILAC, Olavo. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1976.

CORTÁZAR, Julio. Algunos aspectos del cuento. Obra crítica/2. Madrid: Alfaguara, 1994, pp. 365-385.

CRUZ, Décio Torres. Histórias roubadas. Guaratinguetá, SP: Penalux, 2022.

FERREIRA, Renato Luiz de Oliveira. O trato e a aposta: um casuísmo burlesco-agrestino. Londrina: Viseu. 2021.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: parte II. 2ºed. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis. Vozes, 1998.

LAVOISIER, A. L.. Tratado Elementar de Química. São Paulo: Madras, 2007. 397 p. Tradução: Laís dos Santos Pinto Trindade.

PAQUETÁ, Marcel. René Magritte: o pensamento tornado visível. Lisboa: Taschen, 2000.p.59-74.

REIS, Dulce Tadeu. Agora a batucada já vai começando: samba, carnaval e raça em Assis Valente. Disponível em: < https://www2.ufjf.br/ppghistoria//files/2017/03/Agora-a-batucada-j%c3%a1-vai-come%c3%a7ando.pdf>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022.

RIBEIRO, Luiza. Uma breve história da polêmica bossa nova. Disponível em: < https://www.queridoclassico.com/2022/07/uma-breve-historia-da-polemica-bossa.html>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022.

ROMANELLI , Francisco Antonio. a língua brasileira no discurso do samba: de Noel Rosa a Caetano Veloso. Disponível em: < http://www.entremeios.inf.br/published/429.pdf>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022.

SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da. A dança da vida: Buytendijk e a fenomenologia do encontro. Disponível em: < https://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistaestudosfilosoficos/art6%20rev13.pdf.>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022.

TAVARES, Braulio. Crônicas e outros textos. O conto e o romance. Disponível em: < https://editoras.com/o-conto-e-o romance/#:~:text=Marcelino%20lembrou%20uma%20famosa%20defini%C3%A7%C3%A3,corrida%20de%20100%20metros%20rasos.)>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022.

WILDE, Oscar. A decadência da mentira e outros ensaios. Trad. João do Rio. Rio de Janeiro: Imago, 1994.



[1] Escritor, músico, poeta e professor, com formação em Engenharia, Filosofia, Matemática e Psicanálise. E-mail: <renato.flamenco@gmail.com>.

 


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