sábado, 22 de dezembro de 2012

A INTERTEXTUALIDADE DE MACHADO DE ASSIS


Um dos pontos de partida na obra de Machado de Assis é a metafísica, que trata dos problemas filosóficos em sua forma clássica, com linhas racionais e não empíricas, que procura determinar as regras fundamentais do pensamento, as condições, causas, princípios, e as suas leis, dando evidência para o conhecimento do real como um todo ― transcendente ―, da humanidade. Uma adjetivação espirituosa ou filosoficamente profunda do ser, dando uma visão do sentido de existência do mundo, descoberta pelas luzes da razão. A palavra metafísica teve origem numa obra de Aristóteles, composta por quatorze livros sobre filosofia.
A Intertextualidade é uma referência explícita ou implícita de um texto em outro. Machado de Assis é um especialista nesta forma de escrita na literatura brasileira. Há situações em que de maneira imparcial, deixa o seu texto fluir, gerando uma energia literária com a sua epistemologia1. Machado insere o leitor na obra, com alusão, citação e referência, com o objetivo ousado e inovador, utilizando a sua narrativa como crítica à sua época, exemplificando obras anteriores, utilizando a sua forma rebuscada, escondendo a verdadeira essência, mostrando que um texto literário é influência ou continuação de outros textos. Isso fica claro nas referências bibliográficas de sua obra.
A intertextualidade da literatura europeia e da filosofia ocidental, textos sagrados, as artes plásticas, a história geral, a cultura popular, entre outras, estão presentes na obra machadiana. Conforme cita Celso Lima Latini, no seu trabalho: Organização, particularidades e as influências literárias na produção machadiana, Afrânio Coutinho menciona que um dos livros prediletos de Machado de Assis é “A Bíblia”― principalmente o livro Eclesiastes ―, porém, também com grande predileção por “Hamlet” de William Shakespeare, “Dom Quixote” de Miguel de Cervantes, “Prometeu” de Ésquilo, além da influência e leitura das obras de Pascal, Schopenhauer, Nietzsche, Dante Alighieri, Giacomo Leopardi, Eça de Queirós, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Thomas Hood, Heine, Charles Dickens, Henry Fielding, Laurence Sterne, Carlyle, Ritcher, Goethe, Darwin, entre outros. Baseado nas ideias dos grandes filósofos, pensadores e escritores, Machado cria o imaginário social brasileiro.
O ponto de partida na formação de sua obra, retratando o período histórico que vai do segundo reinado à República, são os seus romances da chamada segunda fase literária: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba”, “Dom Casmurro”, “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires”. As obras nascem com o novo Estado, a Constituição da República Federativa do Brasil, liberdade de imprensa, organização militar das Forças Armadas ― principalmente o Exército ―, e com uma grande campanha abolicionista. A elite liberal brasileira nega-se a aceitar a identidade patriótica dos nacionalistas e governos, passa a defender que cada cidadão é representante de si mesmo. Ainda dependente economicamente da Inglaterra, o país bebe das artes e literatura europeia, com grande ênfase para a mais influente da época, a literatura francesa.
Utilizando a sua semiótica2 textual, Machado de Assis publica no ano de 1881 a sua obra “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, criando um narrador que conta a sua vida depois de morto, mudando radicalmente o panorama da literatura brasileira, expondo de forma irônica os privilégios da elite brasileira da época. Descreve a sua morte, a cena do enterro, os delírios antes de sua morte, retorna à sua infância, com digressão, objetivando esclarecer ou criticar o tema em questão por parte do narrador. A narração é feita em primeira pessoa e postumamente, ou seja, o narrador se autointitula um defunto-autor ― um morto que resolveu escrever suas memórias, utilizando referências, alusões e citações de outras obras existentes.
Realizando a fusão de dois ou mais elementos com sintagmas, estabelecendo um elo de subordinação entre o determinante e o determinado, formando uma unidade léxica, como no exemplo: "Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprêzo, ao pé dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor ao pé de mim”. Segundo Luís Filipe Ribeiro, em Mulheres de papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis”, o sentir-se bem do jovem Brás é todo feito de uma superioridade que vai do social ao físico, passando pelo moral. A própria construção da frase filha espúria e coxa denuncia a extrema maldade do narrador. Ao atribuir dois adjetivos a um mesmo nome, cria entre eles uma relação de equivalência, ou seja, as qualidades espúrias e coxa equivalem-se nesse sintagma, como a dizer que uma e outra decorrem da mesma causa.
Machado de Assis impõe grande quantidade de fragmentos discursivos, rompendo a linearidade da narrativa. As referências, citações, alusões da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, faz um elo entre o enredo e as obras relacionadas, sepultando o passado e mostrando o novo para entrar de vez na atemporalidade3 com sutileza e profundidade, sendo que muitos dos problemas e desmandos da sociedade da época ainda estão presentes no Brasil contemporâneo, de forma ironicamente atualizada. Como exemplo da sua atemporalidade para a sociedade moderna, existe na parte amorosa, a célebre frase: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. Essa é uma das características do estilo machadiano, explorando as figuras de linguagem de eufemismo e ironia. Marcela é prostituta de luxo, mas na obra não há, em nenhum momento, a caracterização nesses termos nem que naquela relação, amor e interesse financeiro estão intimamente ligados.
Portanto, Machado de Assis, com maestria, faz o leitor sentir e pensar, para entender a essência do texto com o humor irônico, que é uma de suas marcas, sempre guiada pela sua intertextualidade, desmascarando as faces ocultas da alma humana ― principalmente as imperfeições da classe dominante ―, com metalinguagem4 e excelência gramatical que o levaram ao ápice da literatura brasileira. Uma reflexão para o leitor com sensibilidade literária, que jamais será o mesmo após ler a obra machadiana. A sua visão filosófica será aguçada, transbordando os limites do conhecimento humano.

Renato Luiz de Oliveira Ferreira5

 

1Estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas, e que visa a determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance objetivo delas; teoria da ciência, do conhecimento.
2A arte dos sinais. Denominação utilizada, principalmente pelos autores norte-americanos, para a ciência geral do signo; semiologia, ciência geral dos signos, segundo Ferdinand Saussure, que estuda todos os fenômenos culturais como se fossem sistemas de signos. Em oposição à linguística, que se restringe ao estudo dos signos linguísticos, ou seja, da linguagem, a semiologia tem por objetivo qualquer sistema de signos (imagens, gestos, vestuários, ritos, etc.).
3Relativo a atemporal, em que não há tempo; fora do domínio do tempo.
4A linguagem utilizada para descrever outra linguagem ou qualquer sistema de significação: todo discurso acerca de uma língua, como as definições dos dicionários, as regras gramaticais, etc.
5Possui graduação em Engenharia Mecânica com habilitação em Controle e Automação pela Universidade Cruzeiro do Sul – UNICSUL.


  
Referências bibliográficas: 
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 28ª edição, São Paulo; Editora Scipione, 1994, p. 150.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. 7ª edição, Belo Horizonte; Editora Itatiaia, 1993, p. 150.
COSTA, Érika Maria Asevedo. A Intertextualidade em Memórias Póstumas de Brás Cubas UFPB.
COUTINHO, Afrânio. Machado de Assis na literatura brasileira. In: Machado de Assis. Obra completa: romances. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1963, v. 1, p. 23 – 64.
CRUZ, Maria de Fátima Berenice da. A volubilidade da narrativa machadiana. Conferência proferida no Fórum educacional: convivendo com as diferenças por ocasião do centenário Machado de Assis (19/11/2008 – Riachão do Jacuípe-BA).
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2º Edição, Nova Fronteira, 1986.
LATINI, Celso Lima. Organização, particularidades e as influências literárias na produção machadiana.
RIBEIRO, Luís Filipe. Mulheres de papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. Niterói: EDUFF, 1996.

Um comentário:

Unknown disse...

Texto muito bom! Esclarecedor...valeu!