sábado, 22 de dezembro de 2012

Almoço na Pensão Bom Jesus da Lapa

Texto em homenagem à dona Maria José.

— Quem é? Quer o quê?! — fala uma senhora com um lenço na cabeça e uma xícara de café nas mãos.
— A senhora tem almoço? — pergunta um senhor com chapéu na cabeça, um bocapiu em uma das mãos e com os pés rachados, calçados numas sandálias havaianas amarradas de arame.
— Tem sim! — responde a senhora, levando a xícara com café à boca, segurando uma frigideira cheia de farinha, com ovo frito misturado com coentro, pimentão e cebola.
— A senhora tem o que pra comer? — pergunta o homem com um olho grande na frigideira cheia de farinha da dona da pensão.
— Galinha e bife! — responde a senhora com a boca cheia, deixando cair um pouco da comida da frigideira nos bolsos cheios de chaves do seu folgado vestido.
— Quanto custa? — pergunta o senhor, quase babando de fome em cima da frigideira preta sem cabo que está nas mãos da senhora.
— Vinte cruzeiros, mas eu faço quinze! — responde a dona da pensão, raspando o último resto de farinha com ovo da frigideira.
— Vinte conto?! — pergunta o homem, assustado.
— Eu faço quinze, eu não acabei de falar! Está achando caro? — fala a dona da pensão, já com raiva.
— A senhora não faz cinco conto? — pergunta o miserável do homem.
— Cinco conto?! Você está me achando com cara de otária pra vender um prato de comida por cinco conto? Quer comida de cinco conto vá lá na feira do pau! Mas quá, você pensa que eu estou roubando, meu senhor?! O quilo da carne está de dez conto, se eu for vender comida de cinco conto eu passo fome. Eu tenho sete filhos pra criar. Vendendo comida a quinze, eu ainda não estou ganhando nada.
— Está bom minha senhora, então eu vou pra feira do pau que lá eu acho comida
boa e barata! — responde o homem, saindo rápido.
— Vá pra porra! — responde dona Maria, batendo o portão na cara do homem.
— Já fui! — respondeu o homem, correndo em direção à feira do pau.
— Que nego bandido desgraçado! Está me achando com cara de otária pra vender comida pra ele a cinco conto. Só se eu for roubar!

Dona Maria caminha até a cozinha e grita para uma das filhas: — Sandra! Tire esse penico podre do quarto, tome vergonha nessa cara lavada. É por isso que não fica ninguém aqui! Vocês vão esticar as canelas de fome seus miseráveis. Eu vou me sumir! Vou comprar uma mala e vou morar num asilo! Só assim pra vocês me darem valor.

Sandra responde com cara de choro: — Esse penico é de Nem, mainha!
— Não quero saber! Tire essa porra daí, se não, quando aquela negra chegar eu vou esfregar esse penico na cara dela! — responde dona Maria.
Passado mais um tempo, chega do açougue, a sua filha Lucinha.
— Mainha, eu trouxe a carne. Tonhão falou que tem um quilo certo.

Dona Maria pega a carne, desenrola do papel meio acinzentado, misturado com o sangue do boi, olha para os bifes, sacode com as mãos como se fosse uma balança Filizola, e diz: — Volte! Volte e devolva essa porra pra Tonhão. Isso aqui não tem um quilo de carne. Ele está querendo me roubar. Fale a ele que eu quero o meu dinheiro de volta. Se você não trocar eu vou lhe dar uma surra. Cara de cavalo! Eu também falei que eu queria chã de dentro e você trouxe chã de fora. Você vive no mundo da lua, parecendo uma abestalhada, cara da peste! Vá lá e volte logo!

Lucinha sai trocando as pernas secas, com o suposto quilo de carne nas mãos pra Tonhão açougueiro trocar. Enquanto isso, dona Maria passa a faca de cozinha no chão, dizendo ela que está amolando. De repente, ela grita de novo: — Sai daqui! Ah puta, está querendo roubar a minha galinha. Eu vou matar essa porra dessa gata! — dona Maria dá um chute no rabo da gata, que sobe correndo para o telhado.

Enquanto isso, um mendigo grita da porta, usando a próclise de costume: — Me dê uma esmola, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo!
— Deus lhe favoreça, arrume pra dois! — grita dona Maria, ainda enfezada com a gata!
— Eu pisei em rastro de corno hoje. Rapaz, eu não gosto de mulher cedo na minha porta. Sangue de quixe, toda vez que aquela mulher pisa na minha porta de manhã cedo, não aparece um vivente, não ganho um vintém! Isso é Bem-te-vi mandando jogar pemba na minha porta. Mas ele me paga. Hoje eu estou virada na porra!

"Blim blão!" — soa a campainha.

— Quem é?! — pergunta dona Maria lá do fundo da pensão, acendendo o fogão de carvão.
— Sou eu comadre! — responde Tonhão, dando aquela risada de quem está com asma brônquica!
— Mas Tonhão! Você não presta, me vendendo "oitocentas gramas" de carne dizendo que é um quilo!
— Eu já acertei, comadre! Fique tranquila que eu agora eu mandei um quilo e "duzentas gramas"! — responde Tonhão, dando a sua risada cheia de chiados e trocando com dona Maria, como de costume, o grama pela grama.
— Quem não te conhece é quem te compra, Tonhão! — responde dona Maria, com um sorriso.

Tonhão vai embora, mas dando muitas gargalhadas, ajeitando o seu famoso chapéu de couro.

Enquanto isso, dona Maria grita da cozinha: — Marcelo! A comida vai esfriar, Marcelo!
— Eu já vou mainha, que pressa da senhora! — responde seu filho Marcelo, com a calma de sempre.

Passado alguns minutos, chega o seu filho mais velho, Raimundo: — Benção mainha! — fala Raimundo, passando uma das mãos na cabeça de dona Maria.
— Deus lhe dê sorte! — responde dona Maria, abanando o fogão de carvão que está difícil de acender.
— Mainha, me arrume vinte conto, segunda-feira eu devolvo. Preciso comprar uma galinha pra comer no domingo. — comenta Raimundo, olhando sério para a mãe.
— Só se eu for roubar! — responde dona Maria.
— A senhora não tem "vinte conto", mainha? — fala Raimundo, com um sorriso.
— Tem quinze dias que não aparece um vivente, nem pra dormir! Preciso jogar sal grosso na casa.
— É brincadeira, mainha! Trouxe "vinte conto" pra senhora fazer a feira. — Raimundo começa a sorrir, tira vinte cruzeiros do bolso e dá à dona Maria.
— Meu filho, muito obrigado! Que menino mágico! Quer um café? — dona Maria depois que ver o dinheiro, começa a sorrir.
— Não mainha, eu tenho que ir, Ninha está me esperando no Central para eu levar as compras pra casa.
— Oh! Meu filho, você pode me dar esse dinheiro? Não vai fazer falta?
— Não mainha, Tchau! — responde Raimundo, dando risada e saindo devagar, indo de encontro à sua mulher, Ninha, que está no supermercado.

Hora do almoço na pensão, chegam os outros filhos, Cláudio e Pinho.
— Cláudio, onde está a sua bicicleta? — pergunta a sua mãe, dona Maria.
— Poxa macho, eu esqueci na banca de revistas, ontem! — Cláudio sai correndo pra ver se ainda acha a sua bicicleta. ”Acha duas!”
— Mas menino, você anda no mundo da lua! Vai sair sem almoçar?! — fala dona Maria para o filho Cláudio, que não houve porque já está longe, foi em busca da sua bicicleta.
— Pinho, a comida está na mesa!
— Já vou Mainha! Cláudio está chorando porque não achou a bicicleta.— comenta pinho, dando risada da situação.
— É uma besta mesmo, nem pagou e já perdeu a bicicleta. — comenta sua mãe.

Pinho pega o seu prato com as duas coxas de frango e começa a comê-las com arroz e feijão, assistindo ao programa esportivo “No Campo do 4”, da TV Aratu.

Dona Maria continua na cozinha, mas com os vinte contos no bolso, está mais tranquila agora.

Renato Luiz de Oliveira Ferreira

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